Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu machismo

O descanso também é político

Que em 2023 as mulheres possam ter alívios para seus pés cansados; sem culpa

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Escrevo este texto no meu último dia de férias. Foram dias de muito amor e paz, em que meu único compromisso era com essa coluna. Estive no Uruguai, em Punta del Este. Apreciei novamente a linda Casa Pueblo de Paez Vilaró, onde vi o Sol se pôr lindamente. Nadei com os lobos-marinhos na Ilha dos Lobos, pulando no mar gelado apesar do frio na barriga. Ali, entendi que deveria soltar-me e me entregar ao momento. Conheci a bela e encantadora José Ignacio. Visitei Montevidéu, cidade de que gosto muito, andei pelo centro histórico e às margens do rio da Prata.

Na Serra Gaúcha, minha rota seguinte, estive na região de Gramado, onde me encontrei com a mata e abracei pessoas queridas. Em Guaporé, a três horas dali, passei alguns dias dando meu abraço mais carinhoso em minha amiga de mais de 20 anos. Ela se chama Flávia Monteiro e há pouco tempo é juíza aprovada em concurso no Tribunal de Justiça do estado. Tenho um orgulho imenso dessa minha amiga, que conheci aos 19 anos, quando éramos jovens funcionárias na Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos.

Passeamos por vinhedos, conhecemos Bento Gonçalves e Garibaldi e fomos ao cinema assistir ao filme sobre Whitney Houston, nossa referência maior. Amamos Whitney e amamos também Aretha Franklin —em sua homenagem, assistimos à série sobre sua vida, o que nos rendia longas e animadas conversas em que a partir da trajetória dessas grandes mulheres negras trazemos lições para nossas vidas.

Na ilustração, uma mulher está deitada na praia, sobre uma canga laranja, apoiada sobre seu braço esquerdo. Ela é negra, tem cabelos pretos, usa um maiô branco, e um chapéu de palha.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 26.jan.23 - Aline Bispo

Um sentimento de prazer me tomou durante a viagem. Um prazer que é se despedir do peso e da culpa por descansar e fazer o que se gosta. A leveza foi a melodia que atravessou meu espírito e encheu-me de graça para rir, conversar, viver momentos de alegria. Uma "desobrigação" em estar alerta para trabalhar, trabalhar, trabalhar, comentar o que está acontecendo no momento, engajar-se em tudo.

Para mim, isso ainda é um processo. Escrever é algo que faço desde sempre, e nem nestas férias, as mais extensas da minha vida, me vi desobrigada de fazê-lo, tanto que a coluna segue em dia. Mas escrever é algo que me dá prazer, e escrevo com erotismo, isto é, na perspectiva de Audre Lorde, que já citei nesta Folha, como uma pulsão que me move para uma existência feminista. Quando perco esse erotismo e tenho que escrever, um pouco de mim adoece, uma gota de minha vitalidade escorre pelos meus dedos e uma cura é necessária.

A cura me transcende como pessoa, uma vez que ela está informada pela minha existência dentro de uma sociedade. É um reflexo do colonialismo exigir que mulheres negras trabalhem à exaustão e estejam sempre à disposição para o serviço. Durante muito tempo internalizei essa opressão, julgando que não poderia descansar ou que só poderia se estivesse absurdamente estafada; simplesmente não entendia que existia a possibilidade de equilíbrio.

Há uma estrutura que visa confinar as mulheres no cuidado de crianças, sem a possibilidade de descansar, em um infinito ciclo de atividades domésticas que faz com que muitas passem a vida toda sem férias, sem um tempo inteiramente para si. Uma vez, pensando em minha mãe, que foi uma dessas mulheres que faleceram jovens e cansadas de tanto trabalhar, perguntei: "Mãe, quais eram os seus sonhos?". Ainda hoje penso nas respostas...

Lorena Cabnal, feminista comunitária de Iximulew, terra nomeada pela colonização como Guatemala, foi uma companheira de viagem nestas férias. A primeira vez que a vi foi num vídeo em uma rede social, traduzido por uma página chamada Arquivos Feministas. Passei a assistir a entrevistas traduzidas e ler artigos para conhecê-la e gostei ainda mais. Cabnal traz sua perspectiva a partir de uma visão de mulheres para a proteção de seus corpos, de sua ancestralidade e dos territórios dos povos.

No vídeo, Cabnal diz: "Não podemos lutar contra o machismo, contra o racismo, contra o neoliberalismo e contra a pandemia com corpos doentes, corpos tristes, corpos deprimidos. Porque uma das intenções do sistema patriarcal é que as mulheres tenham corpos infelizes".

Essa frase ressoou forte em mim, que venho de geração de mulheres que tiveram seus corpos adoecidos.

Lorena Cabnal, ativista guatemalteca
Lorena Cabnal, ativista feminista guatemalteca - Reprodução

Nesse sentido, penso que feministas como Cabnal trazem reflexões revolucionárias, que confrontam o patriarcado racista e o sistema capitalista, que desejam nos confinar no lugar da produção infinita e na culpa e retiram a leveza e o gosto dos prazeres simples. Matam as oportunidades de uma vida saudável.

Meu desejo para este ano é que as mulheres possam ter momentos de aliviar seus ombros e ter alívios para seus pés cansados. Sem culpa.

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