Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Minhas memórias afetivas sobre a arte de benzer

Benzedeiras ocupam lugar de respeito em suas comunidades

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O benzer é um ato de afeto e acolhimento. Uma sabedoria, passada de gerações a gerações, e que há muito vem trazendo alívios para as dores do corpo e da alma. Geralmente, as benzedeiras ocupam um lugar de respeito em suas comunidades, apesar de ainda lutarem pelo reconhecimento de suas artes. Eu chamo de arte porque elas dominam a arte de enxergar e acolher o próximo. Suas palavras trazem conforto, seus conhecimentos profundos sobre as qualidades das ervas trazem alguma paz para quem necessita, suas habilidades em acalmar o coração e a mente produzem efeitos duradouros.

Tenho muitas memórias afetivas sobre a arte de benzer. Minha avó materna, dona Antônia, foi uma benzedeira muito popular em Piracicaba, interior de São Paulo. Lembro as filas gigantes que viravam o quarteirão da casa dela nos dias em que ela atendia a comunidade. Mas, antes, ela atendia os netos que lá estavam, e foram muitas vezes que durante minhas férias escolares vivenciei esses momentos em que ela sussurrava rezas e passava um galho de arruda em mim. Ela era muito respeitada e pessoas de várias raças e classes sociais a procuravam, mesmo nos dias em que ela não estava com a casa aberta para atendimento.

Eu cresci sendo rezada pela minha avó nas férias ou quando ela nos visitava, mas minha mãe sempre me levava a uma benzedeira que morava perto da gente, em Santos. Lembro também vivamente do senhor Alfredo, que benzia semanalmente. Precisávamos acordar de madrugada e enfrentar uma longa fila para conseguir pegar senha. Ele era um senhor bondoso, de voz calma, que se dedicava ao trabalho espiritual.

Quando minha filha nasceu, minha avó e minha mãe já tinham morrido e foi difícil encontrar alguém para benzê-la. Procurei por meses, até que encontrei uma senhora que atendia em seu apartamento.

Com o tempo, fui cada vez encontrando menos essas senhoras rezadeiras nas grandes cidades. A imposição de visões de mundo trazidas por algumas religiões, de forma autoritária, demonizou e criou estigmas em relação a esse fazer. É muito comum algumas senhoras irem aos meus lançamentos de livro e dizerem que rezam por mim, o que ameniza um pouco da saudade.

A ilustração tem fundo amarelo. Ao centro, a mão de uma pessoa negra, vindo de cima para baixo, segura um punhado de folhas de arruda. À esquerda e à direita dessa mão, estão também outros dois maços de folhas de arruda.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 11 de maio de 2023 - Aline Bispo

Quando estive na Riviera Maya, no México, conheci o que eles chamam de "balan", rezador da comunidade. Fui benzida por eles. Alguns ficam na entrada de "cenotes", onde, segundo a cultura maia, pessoas eram ofertadas para apaziguar os deuses. Então, em alguns lugares, eles pedem que os visitantes sejam benzidos antes de entrar.

Já quando estive na Cidade do México, lembro-me de ter sido benzida por dois homens indígenas mexicanos descendentes de astecas, como eles se apresentavam. Sempre que visito um local onde essas tradições existem, busco conhecer e participar, se assim for autorizado. Essas experiências me marcaram profundamente e foi bonito perceber que, mesmos em contextos e de formas diferentes, essas tradições se entrecruzam.

Eu carrego essa arte na minha linhagem feminina e recentemente comecei a aprender mais sobre isso. Minha avó não teve tempo de me ensinar, eu tinha 13 anos quando ela morreu. Mas sei que ela deve estar feliz em ver a neta aprender mais sobre uma arte que a fez ajudar tanta gente. Quando falei sobre esse assunto para um círculo de pessoas, um homem me disse que eu deveria acreditar na ciência, não em crendices. Eu respondi que eu acreditava na ciência e no poder da reza ao mesmo tempo, que não eram caminhos excludentes, como muitos querem fazer parecer.

Recentemente assisti a alguns documentários que são importantes registros dessa cultura popular. Foram "Deus te Pague: Benzedeiras e Benzedores", "Benzedeiras do Brasil" e "Benzedeiras: Ofício Tradicional", todos disponíveis no YouTube. Foi bonito assistir ao trabalho dessas mulheres em prol do próximo, o conhecimento sobre plantas medicinais, a sabedoria e a luta pelo reconhecimento.

No município de Rebouças, no Paraná, a lei nº 1.401/2010, conhecida como a Lei das Benzedeiras, institucionalizou o trabalho de benzedeiras(os), curadoras(es), costureiros(as) de rendiduras (dores musculares) ou machucaduras e regulamentou o livre acesso à coleta de plantas medicinais nativas.

Ao pesquisar, vi que há muitas pessoas tentando manter essa tradição. Há cursos e grupos —como A Escola de Benzedeiras, de Brasília, que reúne milhares de mulheres. As práticas de cura pelo benzimento resistem e, independentemente de se acreditar nelas ou não, há que se respeitá-las como parte da nossa cultura popular. Há que se respeitar esse lugar de memória afetiva para tantas pessoas neste país.

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