Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Machado de Assis: a metafísica da liberdade

Há sintomas de uma escravidão mal resolvida na imposição do tema a escritores negros

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Esse último dia 21 de junho é uma data muito especial na literatura brasileira, pois nesse dia, em 1839, nasceu, no morro do Livramento, no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis.

Sobre o escritor, destaco uma importante homenagem da Festa Literária das Periferias, a Flup, que acontece anualmente no Rio de Janeiro. A edição deste ano foi em maio, na comunidade onde nasceu o escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, também conhecida como Casa de Machado.

Com a presença do músico e imortal da cadeira nº 20 na ABL, Gilberto Gil, o evento foi um marco na celebração da trajetória negra do Bruxo do Cosme Velho. A homenagem às origens do escritor fez as merecidas pazes com o passado de quem foi embranquecido por uma sociedade racista e que foi acusado de se embranquecer, por supostamente não se ter envolvido com temas de seu tempo.

Devemos lembrar a época em que Machado viveu e escreveu suas obras históricas para contextualizar os dilemas de ser o maior daquele período. O escritor foi contemporâneo ao auge de teorias biologizantes do século 19 que defendiam a inferioridade "natural", biológica, da população negra para justificar a escravidão e a ausência de políticas para a inclusão social no pós-Abolição.

Contudo, seu talento era tamanho que, mesmo de origem pobre, ou, como sublinhado pela Flup, um "cria da favela", chegou em vida a experimentar o alto prestígio pelo seu trabalho, algo que seria incomum por si só. Sendo negro, então, Machado vivenciou uma realidade única.

Um dos postulados do racismo científico é a incapacidade da população negra de exercer o trabalho intelectual. Este deve ser reservado aos brancos, enquanto os negros devem se ocupar do trabalho braçal. Logo, dado o contexto da época, não se pode negar que muitos intelectuais encontraram estratégias para sobressair em espaços hostis a negros escritores.

A ilustração tem o fundo de tom verde e ao centro está a figura de Machado de Assis, ele tem cabelos e barba grisalhos, usa camisa branca, gravata, terno e um par de óculos, estilo pince-nez, sem hastes laterais
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 22 de junho de 2023 - Aline Bispo

De outro lado, o alegado silêncio do escritor sobre a opressão à população negra na época foi a vidraça que muitos de seus críticos miraram para desnegrecê-lo.

Essa crítica histórica à suposta omissão de Machado em relação à escravidão é contestada por pessoas estudiosas de sua obra —lendo para escrever este texto, mergulhei no artigo "Machado de Assis e a Escravidão: marcas do cativeiro nos contos ‘O Caso da Vara e ‘Pai contra Mãe’", de Renata Lopes da Silva e Francine F. W. Ricieri.

Diversas autoras e autores apontam críticas, ironias e passagens sutis de Machado em oposição ao sistema escravista. Segundo essa corrente, há uma injustiça histórica em relação à trajetória do escritor que merece reavaliação.

Contudo, mesmo partindo dos pressupostos da crítica, há ironicamente sintomas de uma escravidão mal resolvida que segue sendo imposta às pessoas negras até hoje. "Você é negra, logo você tem que denunciar o racismo". "Você é negro, logo está condenado a escrever sobre tal tema". "E tem que ser de tal jeito ou você não presta."

Se queremos liberdade para as pessoas negras, essa liberdade deve ser, inclusive, para escrever sobre o que entender ser o caso. Pode ser a liberdade de militar no movimento abolicionista, pode ser a de atravessar a carreira na literatura sem se envolver com esses debates, conforme esperado por aqueles que subiram aos palanques. A experiência da negritude é plural, como plurais são os movimentos de resistência.

Negro, pobre e gago, Machado desafiou os obstáculos postos munido de seu imensurável talento e de sua brilhante estratégia de sobrevivência em uma sociedade profundamente racista, que exige um negro essencializado.

Suas passadas pioneiras abriram caminhos e hoje inspiram crianças e jovens de comunidade, como ele mesmo foi um dia, a acreditar que a jornada pela literatura é possível, mesmo em um país como o nosso.

É por isso que, mesmo 184 anos após seu nascimento e 115 anos após a sua morte, a volta às suas origens nos abre debates necessários e atuais sobre a condição humana da pessoa negra.

Outra aniversariante deste dia 21 é esta coluna semanal que assino nesta Folha de S.Paulo. Aproveito para agradecer à Direção do jornal, na pessoa de Sérgio Dávila, pelo convite e pelo espaço, no qual tenho ampla liberdade de crítica. Agradeço à equipe da Ilustrada pelo cuidado na edição e minha gratidão a Aline Bispo pela companhia talentosa nesta jornada. Seguimos rumo ao quinto ano!

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