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Alice Walker discute trauma da mutilação genital em novo livro

Autora de 'A Cor Púrpura' usa literatura para veicular as múltiplas vozes em torno do ritual em 'O Segredo da Alegria'

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Shisleni de Oliveira-Macedo

Educadora e tradutora

O Segredo da Alegria

  • Preço R$ 69,90 (308 págs.); R$ 45,90 (ebook)
  • Autoria Alice Walker
  • Editora José Olympio
  • Tradução Marina Vargas

Julgar culturas alheias pode ser uma armadilha. Tendemos a ser mais flexíveis com práticas que nos parecem familiares do que com as distantes das nossas. Mas isso não quer dizer que não possamos olhar para outros costumes de maneira crítica.

mulher negra com cabelo grisalho
A escritora Alice Walker, autora de 'A Cor Púrpura' e 'O Segredo da Alegria' - NYT - 2.dez.2015

Façamos um exercício de reflexão sobre a circuncisão feminina, conhecida como mutilação genital, a partir de duas perspectivas. A primeira se preocupa em entender os sentidos que o próprio grupo atribui à prática. Independentemente de qual (ou quão cruel) seja, ouvimos o que as pessoas dizem sobre o assunto e tentamos apreender os significados atribuídos a elas em seu próprio contexto. Perguntamos por que alguns povos impõem às suas mulheres a circuncisão.

Nesse esforço, estamos abertos a descobrir que existem vários tipos de corte —e de costura— que variam de uma cultura para outra, com diferentes significados, e que em geral o ritual é composto por uma comemoração realizada na infância, na adolescência ou ainda às vésperas do casamento.

Limpeza, pertencimento ou resistência à dor, são muitos os sentidos atribuídos a esse rito de passagem. Compreender isso —e respeitar— não é o mesmo que aprovar.

É possível se solidarizar com quem experiencia a circuncisão, propor medidas de redução de danos, como facilitar o acesso a antibióticos e a utensílios esterilizados para diminuir o risco de infecção e morte. Só não cabe ousar propor a extinção da prática.

Alice Walker toma uma outra posição —é impelida a intervir contra o que ela considera uma forma de tortura.

É o que faz, usando de seu talento e notoriedade como escritora, em "O Segredo da Alegria" e em mais dois trabalhos, junto com a cineasta Pratibha Parmar. Ambas se tornaram ativistas reconhecidas chamando a atenção para o tema, articulando encontros com mulheres e movimentos locais de resistência.

Em "O Segredo da Alegria", reencontramos Tashi, personagem do grande sucesso de Walker, "A Cor Púrpura". Lemos —e parece até que ouvimos— Tashi e as pessoas ao seu redor sobre o trauma após sua mutilação genital.

Cada trecho é aberto com o nome de uma personagem que conta um pedaço da história. Ouvimos muito de Tashi, mas também de sua amiga-irmã, de seu marido, da amante dele, de seu psiquiatra e da psicóloga que o substitui. Escutamos seu filho (um rapaz com deficiência intelectual em um mundo capacitista), seu enteado e inclusive a pessoa que fez seu corte.

Num misto de dureza e delicadeza, ficamos com os olhos grudados no texto, que não segue uma temporalidade linear, ansiosas em saber o que vem depois e o que se passou antes.

Alice Walker já tinha trabalhado temas como violência doméstica e amor entre mulheres em "A Cor Púrpura". Aqui, novamente abraça temas sensíveis e, como no primeiro caso, é acusada de difamar pessoas negras e africanas.

A posição de ativista levanta outras perguntas. Como evitar que a crítica a uma prática, que dentro do todo de uma cultura é apenas um ponto, contribua para a condenação de populações inteiras?

Ou seja, como fazer para que não se justifique a perseguição de todo um povo e seus modos de vida, sob o argumento de que suas tradições são cruéis? Como evitar que sob o manto "civilizatório" culturas inteiras sejam dominadas, colonizadas e levadas à destruição?

Outra questão é sobre protagonismos. Existem desacordos internos sobre essas práticas? São práticas de grupos minoritários ou majoritários? Existem movimentos de resistência? Como se articulam?

Tomar uma posição de acordo com as divergências existentes no interior da própria cultura e não ocupar uma posição de superioridade moral sobre o proceder alheio é tão fundamental quanto acolher, com sensibilidade e indignação, a dor de outras pessoas.

Talvez por isso, a primeira ferramenta de Alice Walker para chamar a atenção para esse tema tenha sido a literatura, com um estilo de escrita no qual é possível ouvir as personagens e humanizar assim toda a história.

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