Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Todas América Latina

A Cordilheira dos Andes tem memórias

Uma delas é Juanita, conservada há 600 anos pela neve da montanha

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Estava em Washington na última semana, como contei a vocês por aqui. Foram dias tranquilos em meio a um turbilhão de coisas que vinha fazendo. Recebi a láurea pela qual tinha ido à capital estadunidense e parti para Arequipa, no Peru, para participar do Hay Festival, o Festival de Literatura que acontece em algumas cidades da América Latina.

A primeira vez que estive nesse festival foi em 2020, pouco antes da pandemia, em Cartagena das Índias, na Colômbia. A organização nos hospedou no místico e belíssimo hotel Santa Clara, localizado no centro histórico dessa cidade de encruzilhadas e de ampla maioria negra. Aqueles dias foram de muitos encontros; foi lá que conheci Velia Vidal, escritora afro-colombiana que tempos mais tarde veio a ser a primeira autora amefricana traduzida e publicada no selo que coordeno no Brasil.

Em termos de encontros prósperos, nessa minha segunda vez no Hay Festival não foi diferente, apesar das mudanças de última hora. Estava tudo combinado com a organização para uma estadia junto a colegas escritoras e escritores na cidade, mas o prêmio de Washington chegou no meio do caminho e tivemos que rearranjar tudo. Então cheguei para o último dia do festival, fiz direto duas apresentações no Teatro Fénix, que se aproxima do bicentenário, e fiquei alguns dias a mais na cidade para ambientar o corpo.

Ilustração de fundo rosa, com um vulcão verde, de onde saem fumaça e escorrem lavas, ao seu redor nuvens e uma vegetação colorida.
Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro de 16 de novembro de 2023 - Aline Souza/Folhapress

Na primeira mesa, tive a oportunidade de dividir falas com o urbanista colombiano Jaime Moreno, que está há muitos anos lecionando em universidades na França, onde também é responsável por coordenar políticas públicas em Paris de destinação de prédios localizados nas regiões turísticas para moradia de pessoas de baixa renda. Em muitos casos, conforme argumentou, a Prefeitura de Paris compra os edifícios e os destina para essa população, uma política que resulta na melhoria de qualidade de vida de toda a cidade.

Nessa mesa também estava a cineasta mexicana Natália Beristein, diretora do filme "Ruídos", o longa-metragem do México mais visto em streamings em todo o mundo. Estava muito animada para conhecê-la. É até curioso, pois assisti ao filme por volta de janeiro deste ano e cheguei a rascunhar um texto para enviar para esta coluna, mas acabei não enviando. O filme conta a história da busca de uma mãe sobre o paradeiro de sua filha, desaparecida há meses, uma obra que mistura ficção com realidade e tem como pano de fundo a violência contra a mulher no país que convive com o drama de desaparecidos pela violência. Fiquei profundamente tocada com o filme e pude dizer à Natália da minha admiração por essa obra.

Na outra mesa do dia, fui entrevistada pela Rocío Ferreira, pesquisadora feminista peruana, que leciona estudos de gênero há décadas em Chicago, nos EUA. Tratamos sobre lugar de fala e o trabalho editorial que vem sendo realizado no Brasil. Foi uma troca muito instigante e, ao final, ficou a impressão de que outros encontros com Rocío virão.

Como era o último dia de festival, na manhã seguinte todos os participantes se foram e eu fiquei na cidade por mais três dias.

Aproveitei para passear por Arequipa, conhecida como "cidade branca", em homenagem às construções feitas com as rochas vulcânicas dessa cor. É a segunda maior cidade do Peru e está entre os vulcões Misti, Pichu Pichu e Chachani, que fazem dela um lugar único no mundo.

Andei pela Plaza de Armas, onde fica a catedral de Arequipa, construída em rocha vulcânica branca e ameacei contratar o passeio ao Vale do Colca, para ver o voo do condor andino e apreciar a beleza de segundo vale mais profundo do mundo. É um passeio de dois dias para ser devidamente aproveitado. Ficou para a próxima.

Vale do Colca, perto de Arequipa, no Peru
Montanha no vale do Colca, perto de Arequipa, no Peru - Rosmery Delgado na Unsplash

A Cordilheira tem memórias. Os incas, que reinaram na região durante séculos, acreditavam que os vulcões eram deuses e as erupções eram sinais de que estavam furiosos. Para acalmá-los, faziam um ritual chamado Pachacoca, que consistia em encantar jovens em sacrifício, em direção ao mundo das divindades.

Uma delas que conta essa história é Juanita, encantada em sacrifício há quase 600 anos. Sepultada no pico de uma montanha, a mais de 6.000 metros de altitude, a geleira a conservou e, desde o fim dos anos 90, está em exposição no Museo Santuarios Andinos. Seu semblante é sereno, seu olhar altivo e os itens com ela sepultados imortalizam a história de seu povo. A experiência de vê-la é forte.

Reconstrução das vestimentas de Juanita exposta no Museu Santuarios Andinos
Reconstrução das vestimentas de Juanita exposta no Museu Santuarios Andinos - facebook/MuseoSantuariosAndinos

De volta ao Brasil, desembarco em um calor vulcânico e me lembrei de Juanita. Diante de tantas notícias tristes por aqui, também penso que há fúria dos deuses contra nós.

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