Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu América Latina

A lhaneza no trato com o regime de Daniel Ortega tem de parar

Governo do ex-guerrilheiro na Nicarágua reedita em muitos pontos o de Somoza

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Ao longo de minha vida, a Nicarágua foi um tema distante. Não tive a oportunidade de ir ao país conhecer sua capital, Manágua, e debater a situação política —a não ser pelos poemas inspiradores de Gioconda Belli, poeta nicaraguense, que me conectavam com a história "nica" e suas mazelas.

Em 2022, fui ao México participar do Fórum Mundial da Unesco sobre Políticas de Cultura, o Mondiacult. A convite dos governos do México e do Reino dos Países Baixos, estive no evento para falar sobre políticas editoriais de tradução de livros.

Dividi a mesa do evento com Roberto Guillén, jovem cineasta e jornalista nicaraguense, fundador da Managua Furiosa, uma mídia independente voltada à cobertura de direitos LGBTI+ em seu país. Atualmente, vive em exílio.

Saímos para jantar e cumprimos uma série de eventos juntos, quando pude então saber mais e tirar dúvidas sobre o que representava Daniel Ortega e o regime ditatorial, que aprovou uma série de leis que discriminam o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a possibilidade de adoção por esses casais.

Guillén produz iniciativas audiovisuais no exterior que abordam histórias de artistas nicaraguenses no exílio. Em uma delas, conta com Leonor Zuñiga como diretora do documentário "Madelaine", que retrata a vida da jovem Madelaine Caracas, estudante que teve de fugir do país após ler na presença de Ortega e Rosario Murillo, sua companheira e vice-presidente, o nome de colegas assassinados pelo regime nos protestos contra o governo em 2018.

Foi o nome de Leonor Zuñiga que li nesta Folha nesta semana, ao deparar com reportagem do jornal sobre o confisco pelo governo Ortega da casa da documentarista e de seu marido, Camilo Castro Belli, em Manágua. A matéria noticiava, na manchete, o confisco da casa de Gioconda Belli –mãe de Camilo.

Belli é autora de um dos poemas que mais amo na minha vida, "Conselhos para uma mulher forte". "Se és uma mulher forte, te protejas das hordas que desejarão almoçar teu coração", começa o poema, ao qual me recorro em dias difíceis, como uma volta para casa. Além do confisco da casa, o governo de Ortega também retirou a nacionalidade de Belli e de outras centenas de pessoas opositoras ao regime.

Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro de 14 de setembro de 2023 - Aline Souza

A poeta é da geração de María Teresa Blandón e outras mulheres que lutaram junto a Ortega contra a ditadura de Anastasio Somoza nos anos 70, mas que nas últimas décadas têm denunciado o governo, que persegue feministas e ataca, por meio de leis e repressões estatais, os direitos das mulheres.

O passado guerrilheiro de Ortega é uma esfinge para os mais velhos progressistas brasileiros e latino-americanos, homens em sua grande maioria, que estiveram na Nicarágua nos anos 80 para celebrar o governo de Ortega como uma utopia finalmente alcançada. Gioconda Belli, que lutou por essa utopia, hoje vive a tragédia de precisar se exilar pela segunda vez e viver, mais uma vez, os horrores de um governo autoritário.

Atualmente, muitos líderes latino-americanos, contemporâneos de Ortega desde os tempos de guerrilha, relutam em criticar publicamente o governo nicaraguense, fazendo as vias práticas de vista grossa às perseguições contra a população crítica.

Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo - Jairo Cajina/Presidência da Nicarágua/AFP

Mas não são todos os que se apegam ao saudosismo que resulta na omissão. Tenho conversado com alguns intelectuais que à época foram visitar o festejado governo de Ortega. Decepcionados com aquilo em que Ortega se transformou, manifestam seu horror diante do regime, o qual, confidenciam, deveria contar com uma denúncia firme e uma observação criteriosa pelo governo brasileiro às violações de direitos humanos.

Não poderia concordar mais. A lhaneza no trato com o regime de Ortega, que reedita em muitos pontos aquele de Somoza, tem de parar. Como escreveu meu colega Mario Sérgio Conti, "a caça ao clero, jornalistas, indígenas e escritores é bestial. Quatrocentos mil se exilaram. Não há liberdade partidária, sindical e de imprensa. A tortura é comum. Dos nove canais de TV, oito estão nas mãos de gente com o sobrenome Ortega".

Almejando ser uma liderança política aliada aos direitos humanos no continente americano, o governo brasileiro precisa mudar sua postura em relação à ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua.

Como Gioconda Belli sublima no poema "Uno no escoje", "não se escolhe a hora de vir ao mundo, mas se deve deixar uma marca do seu tempo. Ninguém pode fugir da responsabilidade. Ninguém pode tapar os olhos, os ouvidos, emudecer-se e cortar as mãos. Todos temos um dever de amor a cumprir. Uma história para nascer. Uma meta a alcançar".

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