Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Pretendo passar o resto dos meus dias na agitação do inferno que é São Paulo

A capital paulista se entranha em nossa alma com tal profundidade que não imaginamos ser possível viver longe dela

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Minha cidade nasceu escondida atrás da serra do Mar, muralha verde que a manteve invisível aos que chegavam pelo litoral. Permaneceu assim por quase quatro séculos: acanhada, provinciana, perdida num planalto de acesso difícil.

Então vieram o café e a industrialização que atraíram imigrantes europeus, árabes e asiáticos, os migrantes do interior e de outros estados, e a cidade cresceu sem parar, transpôs as margens do Tietê e do Pinheiros, canalizou e enterrou rios e riachos, abriu avenidas, demoliu casas, edifícios antigos e tudo o que estivesse no caminho da sua ânsia de progresso.

Um homem olha com interesse um espelho. Na imagem refletida ao invés do seu rosto, surge a imagem do centro da cidade de São Paulo. A imagem tem traços simples e é bem sintética. Apenas a cor branca e tons de cinza na imagem
Ilustração de Libero para coluna de Drauzio Varella - 25 de janeiro de 2024

A cidadezinha pacata, que em 1900 tinha 240 mil habitantes, deu origem à de hoje com mais de 11 milhões. Em seu delírio de grandeza, encostou nas fronteiras da vizinhança para formar uma megalópole com o dobro desse número.

Quando a comparo com a da minha infância, é assustador: como foi possível São Paulo ter sobrevivido a transformações tão radicais? O que levou séculos para ocorrer na Europa aqui aconteceu em meio tempo de vida.

Você, leitor, dirá que a desigualdade social aumentou, que o trânsito é enlouquecedor, que não tem hora nem dia, fluxo nem contrafluxo, que nunca vimos tanta gente na miséria das ruas, que boa parte da população vive em habitações precárias sem saneamento básico, que o medo de assaltos nos persegue o tempo todo, que a maioria dos prédios que nos impedem de enxergar as estrelas são excrescências arquitetônicas e que faltam parques, árvores e espaços de lazer.

Tem toda razão, não é fácil conviver com problemas dessa magnitude, muitos iriam embora daqui se lhes fosse dada a oportunidade. Mas por que razão milhões que teriam condições de ir para cidades mais bonitas, com dias mais tranquilos, teimam em ficar? Por que tanta gente que se mudou para cá fala com nostalgia do lugar de onde veio, mas não retorna às suas origens?

Quem nunca ouviu de um amigo na volta das férias na cidade natal: "A primeira semana foi ótima, na segunda já estava louco para vir embora". Qual a justificativa para gostar de uma cidade tão agressiva como a nossa?

Acho que é porque São Paulo se entranha em nossa alma com tal profundidade que não imaginamos ser possível viver longe dela, mesmo que existam cidades muito mais amigáveis no interior e no litoral.

Para cá afluiu gente de todos os lados. Em sua maioria eram pessoas que não se conformavam com as privações, a falta de perspectivas e a impossibilidade de realizar seus sonhos, que se dispuseram a abandonar parentes, amigos e mergulhar no desconhecido com a esperança de construir vida mais digna e com mais oportunidades para si e para os filhos. Os acomodados não vieram com elas.

Nesse caldeirão de estrangeiros e de migrantes germinou a cultura paulistana que privilegiou o trabalho de quem faz força para progredir. A quem se candidata a um emprego não se pergunta onde nasceu. Aqui ninguém é considerado forasteiro nem será passado para trás por um incompetente só por não ser paulistano.

Ao crescer e abrir espaço para mentes criativas e irrequietas, São Paulo se tornou o maior centro financeiro, cultural e científico do país. O contato com gente desse nível cria condições para a formação de artistas, cientistas e intelectuais que se concentram nas universidades, nas manifestações culturais que emergem na periferia, nos teatros, nas galerias e nas salas de espetáculos.

É um ambiente desafiador, no qual convivo com pessoas que pensam, falam e se comportam segundo padrões estranhos aos meus. O anonimato da metrópole lhes dá acesso um grau de liberdade para criar e inovar que não encontrariam em cidades menores, mais acolhedoras, nas quais uns vigiam os outros.

Nasci e passei a infância numa São Paulo com poucos carros, famílias com cadeiras na calçada e criançada jogando bola em frente às fábricas. Embora guarde boas lembranças, é provável que eu cortasse os pulsos se fosse obrigado a viver na cidade daquele tempo.

Pretendo passar o resto dos meus dias na agitação deste inferno. Como disse Itamar Assumpção: "É uma identificação total, São Paulo sou eu".

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