É jornalista com mestrado em Economia Política Internacional no Reino Unido. Venceu os prêmios Esso, CNI e Citigroup. Mãe de três meninos, escreve sobre educação, às quartas.
Vamos falar sobre incesto, drogas e outros temas difíceis?
Danilo Verpa - 2.jun.17/Folhapress | ||
Dependente químico fuma crack na praça Princesa Isabel, em SP |
Há cerca de duas semanas, enquanto lia o jornal pela manhã, notei que meu filho de oito anos fixou o olhar na primeira página. Não demorou muito e veio a pergunta:
"Mamãe, o que é isso?"
"Isso o quê?"
"Essas fotos? O que está acontecendo nessas fotos?"
Eram duas imagens que ilustravam a cobertura da Folha naquele dia sobre o crack. A maior, do fotógrafo Leonardo Benassalto (da Agência O Globo), retratava uma ação policial para a retirada de usuários da praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo, e denotava violência.
A segunda, do fotógrafo Danilo Verpa (da Folhapress), era uma imagem poética, de um usuário com casacão preto, guarda-chuva da mesma cor, acendendo seu cachimbo, o rosto encoberto por mechas do cabelo despenteado, o fundo escuro fora de foco.
Ambas eram impactantes. Dava para entender por que atraíram a curiosidade do menino.
Enquanto ele perguntou e enrolei pedindo que apontasse a imagem com o dedinho —eu tentava ganhar uns segundos para pensar na resposta—, meu outro filho de cinco anos já estava com os olhos vidrados em mim.
Tinha conferido as fotos e também esperava uma explicação.
Até o caçula, que tem menos de dois anos, parou o que estava fazendo para prestar atenção na cena.
Comecei então a explicar, provavelmente de forma meio confusa, a temática e me alonguei. Falei sobre drogas, a sensação que provoca, os riscos, o que pode levar as pessoas a se viciarem, a importância de não fazer algo só porque amigos sugerem caso eles não se sintam confortáveis ou não achem seguro. Tentei explicar a polêmica da internação compulsória etc.
Quando terminei, os dois maiores me olhavam atentamente (o pequeninho, claro, já tinha encontrado outra distração). Os comentários foram:
"Eu nunca vou usar drogas [o de 8 anos]."
"Eu também não, mas você pode parar de falar sobre isso, mamãe? Estou com medo [o de 5 anos]."
Não acho que exista uma receita certa para a criação de filhos e a educação infantil. Longe disso. Vamos aprendendo e testando na prática. Errando, acertando, consertando, arriscando, se assustando, se encantando.
O jeito "certo" varia também de acordo com a personalidade e as crenças dos pais, o contexto, os recursos disponíveis, as características das crianças.
Com base nas nossas experiências, no que lemos, nas trocas de experiências com outros pais, formamos nossos palpites sobre o que funciona melhor ou pior.
Minha percepção, nestes oito anos de maternidade, é que falar —o mais abertamente possível— sobre os assuntos da vida com os filhos é melhor do que calar, disfarçar ou mentir.
E um parêntesis aqui é que já experimentei um pouco de tudo isso, até porque a maioria das perguntas nos pegam de surpresa, não dá para ter um script pronto.
Vários detalhes que tenho observado e registrado no meu caderninho mental de mãe me levaram à opinião de que sinceridade é sempre a melhor escolha.
Um deles é que as perguntas não morrem. Pode demorar. As palavras, o formato e o contexto podem mudar. Mas elas acabam voltando.
Minha impressão é que adiar a discussão vai aumentando a curiosidade deles, abrindo margem para desconfianças e, portanto, para interpretações equivocadas.
O outro é que a informação pode ajudá-los a se proteger das maldades e dos perigos do mundo. Ao omitir questões tentando protegê-los podemos contribuir para o efeito contrário.
Uma terceira é que dialogar sobre temas variados estimula a curiosidade e o pensamento crítico dos pequenos.
Por pensar assim, fiquei surpresa quando li que o Ministério da Educação decidiu retirar das estantes das escolas públicas a obra "Enquanto o Sono não Vem", de José Mauro Brant, que reúne textos baseados na tradição oral brasileira.
O argumento seria que um dos contos do livro —selecionado anteriormente para alunos do primeiro, segundo e terceiro anos do ensino fundamental— seria inapropriado para essa faixa etária por abordar o incesto.
Na história alvo da polêmica, chamada "A triste história de Eredegalda", um rei quer se casar com uma de suas filhas. Ela é castigada por recusar o assédio e acaba morrendo de sede.
Não li o livro. Não consigo opinar sobre a adequação de sua linguagem, sobre a qualidade de suas ilustrações e de seu texto.
Mas acho difícil que a temática do incesto possa ser, por si só, inadequada para crianças dos seis aos oito anos por suposta "falta de maturidade e senso crítico" dos pequenos para "problematizar" esse tema, pontos ressaltados pelo MEC.
Enquanto o Sono Não Vem |
JosÉ Mauro Brant |
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A impressão que tenho com base no que observo nos meus filhos, no meu sobrinho e em seus amigos, todos nessa faixa etária, é que eles são perfeitamente capazes de dar significado a temas complexos sim e, com o tempo, processar e elaborar o que absorveram.
Ou, como me disse Ricardo Falzetta, gerente de conteúdo do movimento Todos pela Educação, sobre o tema: "Por que é tão difícil para os adultos aceitar que as crianças pensam?".
O efeito da decisão do MEC sobre mim foi semelhante à que percebo nos meus filhos com temas tratados como tabus. Aguçou minha curiosidade de ler o livro.
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