A descoberta de novos produtos que protegem e tratam pessoas advém de pesquisas clínicas, uma importante ferramenta da sociedade.
Dentre os diferentes produtos já descobertos e licenciados para uso em humanos, é inquestionável que as vacinas são as que mais tiveram impacto. Principalmente a partir da segunda metade do século 20, foram capazes de controlar diversas doenças, prevenindo internações e mortes de dezenas a centenas de milhões de pessoas, todos os anos, principalmente crianças.
A importância de diretrizes regulatórias para garantir a ética dos projetos de pesquisa em humanos é reconhecida desde 1964, marcada pela Declaração de Helsinque, e, desde então, regularmente revisada. Sua última versão data de 2013.
Para eticistas reunidos no Fórum Nacional sobre a Declaração de Helsinque: A Perspectiva Brasileira, realizado em fevereiro de 2000, esse é um documento que deve ser considerado propriedade de toda a humanidade. Não à toa, suas várias importantes recomendações culminaram no Guia de Boas Práticas Clínicas, adotado em vários países. É aqui que estão as normas para realização de estudos clínicos em humanos, as quais são seguidas por pesquisas brasileiras e na maioria dos países.
Dentre essas normas, a interrupção temporária de uma pesquisa clínica está prevista sempre que ocorrido um evento grave significativo, até que se tenha todo esclarecimento sobre sua eventual relação ou não com a vacina em teste. Quadros neurológicos graves ou a morte de um participante do estudo são considerados, por exemplo, eventos graves de importância clínica.
Os estudos em fase 3 das vacinas contra a Covid-19 têm incluído um grande número de voluntários. Para citar os que também contam com a participação de brasileiros: 13.060 pessoas no estudo da vacina da Sinovac e Instituto Butantan; 44 mil na Pfizer; 30 mil na Moderna; 30 mil na AstraZeneca; 60 mil na Janssen.
Com tantos participantes, eventos graves podem ocorrer mesmo por acaso. É esperado que, entre tantas pessoas sendo observadas, algumas desenvolvam uma doença grave, tenham o resultado de um exame bastante alterado ou até mesmo venham a falecer. Cabe aos pesquisadores, então, esclarecer se há relação deste evento com a vacina em teste.
Para isso, são criadas cláusulas de interrupção, as quais preveem situações em que o estudo deve ser pausado até que se determine se o evento observado tem ou não relação com a vacina.
A interrupção mais recente se deu agora, desde a noite do dia 9 de novembro, no estudo da vacina Sinovac e Instituto Butantan, e está em revisão pela Anvisa.
Se existe alguma má impressão sobre esse ocorrido, a sensação de que “algo está errado” ou de que “estão escondendo alguma coisa”, é por falta de fundamento e conhecimento das diretrizes que norteiam pesquisas clínicas. Fato é que a interrupção representa exatamente o contrário: é sinal de respeito às diretrizes de avaliação de segurança.
Não há intenção de criar mistério sobre nenhum evento, mas é fundamental prevalecer o respeito aos dados sobre voluntários de pesquisas clínicas, que “devem ser mantidos em sigilo, em conformidade com princípios de confidencialidade, dignidade humana e proteção dos participantes”, tal como dito pela própria Anvisa. Além disso, a interrupção de um estudo é uma medida de importante salvaguarda para monitorar a segurança da vacina. Cabe aguardar a apuração de cada caso para saber se o estudo deve continuar. Se retomado, o estudo da vacina Sinovac e Instituto Butantan terá ainda mais evidências de segurança.
Até agora, três vacinas candidatas tiveram interrupções em testes na fase 3. Os estudos com as vacinas candidatas da AstraZeneca e Janssen também tiveram interrupções anteriores e, agora, já foram retomados.
No Brasil, a Anvisa e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, com o Comitê Científico Independente de Acompanhamento de Dados designado por cada estudo, são os guardiões dos estudos que estão sendo realizados.
O Brasil adota normas rígidas para realização de pesquisas clínicas há muitos anos. Nunca, contudo, tais condutas rigorosas foram tão expostas à sociedade, que vem acompanhando com olhos atentos tudo o que se passa no desenvolvimento de vacinas para Covid-19.
A grande exposição é uma ótima oportunidade para mostrar como se faz pesquisas no Brasil. E é um passo importante para nos tornarmos uma sociedade melhor, respeitando os princípios éticos inicialmente traçados por um grupo de médicos em Helsinque.
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