Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Descrição de chapéu Eleições 2018

'Mirar na cabecinha' é errar o alvo

Governador eleito no Rio descreve execução de pessoas como estratégia de segurança pública

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O governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), escolheu um enunciado obsceno para tratar de um dos temas de maior interesse dos brasileiros: "mirar na cabecinha e fogo".

De tão obscena, a frase, sem seu sujeito, pode levar um passante a pensar que se trata de mais um vazamento erótico, como aquele atribuído a João Doria —tipo uma modinha exibicionista entre governadores eleitos na esteira bolsonarista.

Não é.

Trata-se do modo como o ex-juiz, eleito com quase 60% dos votos fluminenses, descreve a execução de pessoas como estratégia de segurança pública.

A violência é o segundo tema que mais preocupa o eleitor brasileiro, segundo pesquisa Datafolha de setembro deste ano.

O sujeito da frase de Witzel é a polícia. A "cabecinha" a que ele se refere é a de qualquer cidadão que porte um fuzil. E os problemas com essa proposta atravessam os campos da eficácia, da execução e da legalidade.

O primeiro deles deriva da mira dos agentes de segurança.

Tiro endereçado a bandido já acertou a cabeça da criança que brincava na rua. O garoto Eduardo de Jesus Ferreira foi morto por tiro de fuzil disparado por um PM durante operação no Complexo do Alemão no dia 2 de abril de 2015. Ele tinha dez anos de idade e estava brincando na porta de sua casa.  

Disparo do Caveirão, o blindado da polícia do Rio, já matou garoto de mochila e uniforme escolar. Marcos Vinícius da Silva foi morto aos 14 anos a caminho do colégio no Complexo da Maré no dia 20 de junho de 2018.

Esses são dois casos entre muitos dentro do universo das crianças e jovens mortos “sem querer” por forças policiais em operações realizadas em comunidades altamente adensadas e que entregam como resultado pouco ou mesmo nada.

Não dá para culpar o policial na ponta. Com treinamento insuficiente, aparato falho e salários em atraso, seu trabalho é cada vez mais precário num ambiente cada vez mais hostil.

Com isso, matam mais e morrem mais.

Para contornar a imprecisão humana, o governador eleito pensa em usar drones que atiram —esquecendo-se de que eles estarão a serviço da mesma lógica e das mesmas equipes de hoje.

Um segundo problema tem a ver com o fato de a proposta de Witzel errar o alvo.

Quem porta fuzil numa favela é peça de reposição do comércio varejista de drogas. Chamado geralmente de soldado, esse sujeito não controla redes do mercado atacadista, não tem helicóptero, não cruza fronteiras com drogas nem armas.

Eleger esse sujeito como alvo preferencial do Estado para reduzir a violência urbana é mais ou menos como trocar mesários com a intenção de obter mudanças no sistema político brasileiro.

Uma pista de caminho mais eficiente parte da seguinte observação: não se tem notícia de pessoas circulando por Ipanema ou pelo Leblon, redutos da classe alta carioca, com fuzis a tiracolo.

Antes que algum apressado tire conclusões ligeiras, é preciso ter em mente que inúmeros estudos apontaram para uma relação estreita entre desenvolvimento (ou subdesenvolvimento) e violência.

São dois vetores que se retroalimentam: quanto menor o desenvolvimento de determinada região e segmento populacional, maior a violência ali ou neste grupo, o que, por sua vez, reduz as possibilidades de desenvolvimento.

É como se essas comunidades e pessoas estivessem presas num ciclo vicioso de subdesenvolvimento e morte, no qual o Estado não surge para garantir direitos básicos, mas para lançar umas balas perdidas.

A desigualdade é um importante fator criminogênico —aquele que leva pessoas ao crime, e os crimes a ocorrerem. Por isso, investir no tripé saneamento, educação e renda pode ter efeito mais seguro e sustentável na questão da segurança que mais tiros.

Se o ex-juiz só pisou em favelas no contexto festivo de uma carreata política antes de destilar essa obscenidade sobre “mirar na cabecinha”, está na hora de voltar a esses lugares com os olhos preocupados que se espera um governador eleito. A visita tem tudo para mudar seu próprio conceito do que é obsceno.

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