Antes do advento da internet, era preciso perseverança para cumprir a lista de obrigações do cinéfilo modelo. As projeções eram ruins, as cópias arranhadas e as sessões aconteciam no mais das vezes à meia-noite, em cinemas mofados e com o ar-condicionado regulado na temperatura Sibéria.
Nunca me esqueci do projecionista de uma sala da Tijuca que inverteu os rolos de "Esse Obscuro Objeto do Desejo". Terminei a sessão petrificada. Luiz Buñuel não só havia escolhido duas atrizes para viver o mesmo papel, como explodira o elenco no meio da história para, na sequência, ressuscitá-lo.
Apesar do empenho juvenil da minha formação, alguns filmes acabaram esquecidos. Foi o caso de "Stalker", de Andrei Tarkóvski, que deixei passar achando que "Solaris" bastava para resumir o russo. Foi preciso que meu filho chegasse à idade de correr atrás para que eu, levada pelo entusiasmo dele, riscasse o filme da lista.
"Stalker" é foda. O maneirismo enervante que impera no cinema cabeça de Terence Malick e Lars Von Trier inexiste nessa película rigorosa, bela e beckettiana.
Uma região da União Soviética é interditada devido à queda de um meteorito. Muitos dos que se aventuram na chamada Zona jamais retornam, outros ganham a vida burlando barreiras militarizadas, para levar incautos até o território proibido.
Na paisagem desolada, a natureza cresceu em torno do que restou do desastre. Puro Tchernóbil. A razão da cobiça para vencer o cerco se encontra no centro da Zona, numa sala capaz de realizar o desejo daqueles que ali adentram.
Um físico e um escritor contratam os serviços do guia, o Stalker. Apesar dos problemas congênitos da filha, causados pela exposição do pai à radioatividade, e dos pedidos desesperados da mulher, o herói aceita conduzir a dupla, atraído pelo sentimento de devoção que tem pelo lugar.
Sem apelar para efeitos enfadonhos, Tarkóvski se vale da mestria no uso das lentes e de um cenário real, um rio infectado por uma indústria química desativada pelos soviéticos. No Brasil, o cineasta teria escolhido o rio Doce.
O revés da trama se dá na porta da sala dos desejos, onde o Stalker jamais se atreveu a entrar. Ali, ele adverte que a graça só será alcançada por aquele que crê.
Escritor e cientista sucumbem diante da exigência. Em choque, o Stalker retorna para a mulher, repetindo enfermo: "eles não creem, eles são incapazes de acreditar".
A obra me fez pensar em "Democracia em Vertigem", de Petra Costa. A fantasmagoria da Esplanada dos Ministérios, no documentário, lembra a da terra arrasada de "Stalker". O mesmo estado de letargia, de afastamento melancólico de uma realidade confusa e incompreensível.
É como se Brasília estivesse plantada numa zona de exceção, onde as leis existem para serem violadas.
A agonia do impeachment e a resistência de Lula viúvo, às vésperas de se entregar à polícia, se parecem com a paralisia e a angústia dos personagens de Tarkóvski. É preciso acreditar...
"Democracia em Vertigem" é um filme pessoal. E emociona por ser pessoal.
Na sala de montagem, Petra editou as imagens que colheu durante o cataclismo político pós-2013 e as misturou às lembranças dos pais militantes e do avô empreiteiro, realizando o desejo de imortalizar os fatos como os viveu e sentiu.
Ao contrário do físico e do escritor de "Stalker", Petra crê no que filma.
A mim, que duvido, a obra toca pela beleza e o desalento íntimo da narrativa, mas não encerra o caso.
É verdade que Dilma foi alvo da vilania de Temer, Cunha e Aécio e que seu governo fortaleceu o Ministério Público e a Polícia Federal, que, mais tarde, ajudariam a condenar o partido que a elegeu.
Mas, talvez pela identificação com a mãe presa pela ditadura, Petra preserva Dilma, ignorando os equívocos de sua gestão.
Gilberto Carvalho é o único a esboçar autocrítica, ao incluir o PT no jogo de erros que o afastou do poder. "Deveríamos ter feito a reforma política e mantido a proximidade com as ruas", diz, mas já é tarde.
Andrei Tarkóvski e parte de sua equipe morreram nos anos subsequentes à filmagem de "Stalker", devido a doenças causadas pelo contato com o rio de dejetos químicos que serviu de cenário para a película.
Aqui, um meteorito da ultradireita armamentista cristã, Jair Bolsonaro, colidiu com as urnas, elevando a toxicidade da política a níveis insuportáveis.
Sem um guia que nos livre da zona de radiação, talvez só nos reste a morte por glifosfato.
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