Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernanda Torres

Fuga

A literatura tem me servido de escape neste fim de ano esquisito

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Órfã do caudaloso, mítico e aventureiro “Moby Dick”, passei em revista a fila de livros da cabeceira e me agarrei a “Essa Gente”, de Chico Buarque. 

São duas obras incomparáveis, mas a mente não obedece a lógica. Não demorou, a amplidão de Melville se tornou espelho oposto do diário lacônico de Chico.

A literatura tem me servido de escape neste fim de ano esquisito, em que tudo o que reconheço como justo e relevante virou motivo de ataque e chacota da frente obscurantista terraplanista que ocupa o poder.

Herman Melville é um colosso de autor, capaz de conceber o “preferiria não” do magro Bartleby e, em “Moby Dick”, te transportar para o centro de um cardume de mais de cem baleias prenhas, a bordo dos botes de pescadores que ambicionam colher o espermacete que iluminará cidades e civilizações.

A liberdade com que esse monstro de escritor quebra com as regras do narrador, saltando da cabeça de Ishmael para a de Ahab, e delas para as de Starbuck, Pierce e Stubb, mareia o estupefato leitor. Isso quando não abandona de todo os heróis, para se dedicar ao estudo dos cetáceos e de suas representações iconográficas.

“Moby Dick” é um feito inalcançável, que nos afasta da mixórdia da atualidade. Santas letras. Inflamos as velas na direção oposta à de um milagre literário como esse e “Essa Gente” é prova disso.

Tudo o que em “Moby Dick” é farto, belo e poético, é escasso, miúdo e miserável na obra de Chico. A pequenez é tamanha que a própria trama não chega a se estruturar como narrativa. Feito de anotações esparsas e datas perdidas, “Essa Gente” é o diário fantasma de um moribundo pasmo.

O protagonista vive o estranhamento do que o cerca, dos condôminos que exigem que o porteiro abra a porta do elevador, enquanto aplaudem o homem que passeia pela rua armado de um três oitão.

"TERRA PLANA" escrito com uma fonte bastante condensada. Em cima das letras, há uma linha reta. No início da linha à esquerda, um barquinho verde e amarelo cai junto com um círculo azul. As figuras geométricas que formam o desenho do barco lembram as formas que compõem a bandeira do Brasil.
Marta Mello/Folhapress

Foi-se a empatia. Não há mais saída para uma sociedade avessa à natureza, à educação e à cultura, e que vê no extermínio uma solução. Melhor o tiro na própria cabeça.

Acabei o livro tão colada no personagem que engatei outro diário, esse de viagem, de um homem que acreditava existir apenas um problema a ser encarado com seriedade: o do suicídio.

“O Viajante”, sobre o exaustivo périplo de Albert Camus pela América Latina, começa no tombadilho do navio, de onde o filósofo contempla o mar imenso que o separa de seu destino.

Ali, no vasto oceano extraordinariamente descrito pelo argelino, reencontrei a saudosa grandeza de Melville. Durou pouco. Logo, eu já me afogava em datas e anotações, que remetiam aos apontamentos de “Essa Gente”. Curiosa mescla.

Camus sente poucos lampejos de encantamento pelo Brasil, o clima lhe piora a saúde e a agenda é extenuante. Com exceção de Caymmi, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, o moço prefere a solidão de uma noite estrelada à companhia dos homens.

A edição termina com a transcrição das palestras que o filósofo ministrou para os sul-americanos. Nelas, Camus fala da geração à qual pertence, jovens niilistas do período entreguerras que viram a pintura abolir a figura; a literatura, a linearidade; a música, a melodia; e a filosofia, a verdade, em prol dos fenômenos.

E justo esses homens, ensinados a duvidar da pureza e acreditar que todos podiam ter razão, justo eles, acabaram obrigados a se engajar numa guerra. Quem não luta adota os valores do inimigo —e os de Hitler eram inaceitáveis.

Eu também cresci com a ideia de um mundo relativo, plural, e assim como os contemporâneos de Camus, me vejo assombrada pelo ressurgimento do nacionalismo totalitário e carola.

Quisera eu possuir o tesão anárquico para curtir o swing no sofá sifilítico do motel que só serve coca litro de Anderson França, mas não. Minha libido anda a zero. E leio para lembrar que a beleza existe e esquecer do pacto sinistro entre a eficiência econômica e a ignorância que hoje vigora.

Camus fala de ontem, mas parece o agora.

Na maior parte do mundo, o diálogo é substituído, hoje em dia, pela polêmica, a linguagem da eficácia. “O século 20 é, entre nós, o século da polêmica e do insulto. [...] Mas qual é o mecanismo da polêmica? Ela consiste em considerar o adversário como inimigo. Em simplificá-lo, consequentemente, e em se recusar a vê-lo. [...] Aquele que quer dominar é surdo. Diante dele, é preciso lutar ou morrer. Por isso os homens de hoje vivem no terror.”

Hora de encarar “Guerra e Paz”, seguido de “Rio em Schamas”.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.