Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

No clã Bolsonaro os diamantes são eternos como em 007

Messias e Mohamed são frutos do patriarcado em que a mulher é riqueza cobiçada

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Voltei para casa devendo trabalho, com o fuso horário a me cozinhar a insônia e peço perdão pelo que vou confessar:

Dei para rever filmes antigos do 007. É condenável, eu sei, um ícone machista, que mereceu morte lenta e dolorosa no último longa rodado, eu sei. O cônjuge propôs a maratona e eu não resisti. Fetiche de infância. Carne fraca. Mas não há como revisitar o velho Bond sem o filtro do tempo; e aquilo que na adolescência parecia desejável, hoje, por vezes, soa abjeto.

Em "Moscou Contra 007", de 1963, estrelado por Sean Connery na sequência de "Dr. No", todas as mulheres gemem porque precisam muito dar, e não só para James. Um turco maduro, velho contato da M16 em Istambul, abandona o jornal quase obrigado para satisfazer a amante juveníssima que mia ansiosa no recamier. Na visita ao acampamento cigano, homens feitos desfrutam do couvert artístico com dança do ventre, seguida de briga de aranha.

O original em inglês tem amor no título, "From Russia with Love". Na trama, a estonteante agente soviética Tatiana Romanova, em sacrifício à Mãe Rússia, aceita a missão de espionar 007, submetendo-se a todo e qualquer desejo do inimigo. Armas do mesmo calibre, os dois se apaixonam de imediato. Enquanto Romanova ama à vera, chora e se desespera pelo funcionário da rainha, Bond reage apenas com um leve desconforto, como se sofresse de indisposição intestinal.

"Os Diamantes São Eternos", quinto filme da sequência, é de 1971. Com a revolução de costumes em curso e as feministas em alta, as personagens do sexo frágil da obra já apresentam vontade própria, traço inexistente nas garotas de "Moscou Contra 007". A independência, no entanto, não as livra da eterna idiotização.

Ilustração em preto, branco e tons de cinza. Sobre fundo branco, uma silhueta recortada mostra rosto e ombros de Michelle Bolsonaro e ocupa a ilustração de cima a baixo, deslocada para o lado direito do espaço. Cobrindo o rosto dela abaixo dos olhos e se estendendo pelo pescoço (deixando aparente o olho direito, mas cobrindo o esquerdo) está parte do colar de diamantes, um dos presentes do governo da Arábia Saudita. O colar posicionado desse jeito no rosto dela evoca um véu, um véu pesado. Junto com isso, uma fileira vertical de diamantes em forma de grandes gotas aparece pendendo abaixo do olho direito de Michelle, evocando lágrimas.
Ilustração de Marta Mello para a coluna de Fernanda Torres de 15.mar.23 - Marta Mello

Uma mulher de calcinha e soutien esperneia como criança antes de ser arremessada pela janela do quarto, na piscina de um hotel. Na jacuzzi do vilão, duas lutadoras de biquíni acertam um sopapo ou outro no duplo zero, até levarem um caldo estúpido do oponente e terminarem a cena debaixo d’água. Na roleta, a moçoila de seios fartos diz se chamar Plenty —que arrisco traduzir como Dotada— e ouve um resmungo de "com certeza...", de um Bond fixo no seu decote.

O único neurônio XX da fita é uma pilantra coquete, que desfila em trajes sumários enquanto oscila entre o bem e o mal. Uma mulher inteligente pode ser promovida, no máximo, a esperta na Terra de Marlboro dos papais fumantes, que entretêm os filhos no quarto escuro, girando o cigarro em brasa.

Quarenta anos se passariam até que James amasse e fosse traído por alguém de verdade. Em "Cassino Royale", de 2006, a contraditória Vesper de Eva Green funde sexo com sentimento, deixando no chinelo o tesão priápico das versões passadas. Vesper livra Bond da superficialidade e o prepara para "Operação Skyfall", de 2012, obra-prima da franquia.

Com direção de Sam Mendes e elenco digno da Royal Shakespeare Company, "Skyfall" investe na orfandade do herói, centrado na relação edipiana de James com a chefe. A bond girl de "Skyfall" é a septuagenária M., de Judi Dench.

Estátuas de Judi Dench e Daniel Craig no museu Madame Tussauds, em Londres - Leon Neal - 29.out.12/AFP

Caminhamos, mas não muito.

Imersa nesse saudosismo demodê da Guerra Fria, vejo explodir o escândalo da muamba das Arábias no noticiário. Como num enredo de Fleming, suspeita-se que a joia oferecida a Michelle, pelo príncipe saudita Mohamed Bin Salman, seja a retribuição pelo favorecimento, por parte do governo brasileiro, de interesses da Arábia Saudita. Se a hipótese de propina não for comprovada, resta esclarecer a tentativa de usurpação de um bem público, essa bem documentada.

Michelle jura que nunca soube da existência do colar e dos brincos. Ou o marido a tem por tola, o que é comum entre os adeptos do viva e deixe morrer, ou o presente foi, de fato, um mimo dado ao cônjuge varão, em admiração à varoa.

O gesto do príncipe me lembrou um costume anedótico do mundo árabe que visitei. Em alguns países, pelas ruas, era comum que grupos de homens, por elogio, diversão, ou livre machismo mesmo, oferecessem camelos pelas mulheres dos turistas acompanhados. Ao meu namorado foram oferecidos 40.

Messias e Mohamed são frutos maduros de um patriarcado tribal, onde a mulher é riqueza cobiçada. Se a joia não foi um "molha mão", fantasio que o príncipe, seguindo a tradição folclórica para gringo ver, tenha feito uma lisonja ao brasileiro, traduzindo, no valor do colar, a quantidade de camelos que ofereceria pela então primeira-dama. E bota camelo nisso.

E como no clã de Jair a esposa de Jair é mérito de Jair, o presente é personalíssimo. Só falta dispensar os agentes secretos do almirante Bento Albuquerque, depositar R$ 12 milhões na conta da Receita e retirar a mercadoria no guichê do caixa.

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