Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Vitória de Lula livrou os progressistas da posição de estraga festa

Eleição criou afastamentos, mas derrota do fanatismo trouxe gozo indescritível depois de quatro anos de angústia

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Uma década de desmonte, areia movediça sem um pau onde se agarrar. O segundo turno torniquete, com taras de bebês banguelas e menores vadias imaginárias. Granadas, pistolas, tiros e o quase golpe. Xandão xerife contra a PRF tranca rua e Zema cobra ônibus, para impedir os pobres de oposição de votarem.

Surto coletivo.

Perdoe, leitor, o breve resumo de uma página virada, mas escrevo depois da suada vitória, ainda sob efeito do choque. Na casa onde assisti à final da Copa, os amigos prepararam uma mini-Copacabana de fogos de artifício, estourada numa zona sul enlutada. É impressionante a quantidade de gente bem nutrida capaz de bater continência para as barbáries do capitão, em nome do soldado raso Guedes.

 Uma tela de TV mostra a palavra "Eleito", com fogos de artifício no pingo do "I", referindo-se ao resultado do segundo turno da eleição para presidente. Dois garotos em idade universitária aparecem de costas para quem olha a ilustração. Um deles está enrolado numa grande bandeira do Brasil, que está escorregando de um de seus ombros; o outro está usando uma camiseta vermelha com desenho de uma mão fazendo L de "Lula" estampada em branco. Ele está abraçando as costas do amigo da bandeira, como quem o consola.
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres - Marta Mello

No dia seguinte, até o ar amanheceu mais leve. Bozo fez a fina de desaparecer, mas a angústia resistia. Era como se, em algum universo paralelo, o sofrimento continuasse igual.

Foi a mememania que me acalmou o fígado. Por dias, troquei mensagens sem cessar. Flagras vexaminosos do efeito do vírus da Cambridge Analytica em bolsonaristas não vacinados. Um exército de furiosos a parar caminhão com a unha, clamando por uma diretriz clara dos zeros. Exorcismo de comunistas e casos ainda mais graves, com saudações nazistas, no Sul, e o hino nacional cantado em coro para um pneu. Um pneu.

Símbolo de cu e progresso.

Gozo indescritível, o de rir. Sim, porque foram quatro anos de cuspe na cara, com o lado de cá nas cordas, condenado a denunciar, a se indignar, a condenar. O mimimi da civilidade pentelha, diante do terror às gargalhadas. Eles monopolizaram o humor com mau gosto, encurralando progressistas para o papel de estraga festa. Foi gravíssimo.

"Era como o sujeito que interrompe a suruba, para lembrar os perigos das DST", resumiu Antonio Prata, como só ele pode.

Os de mais de 80 refaziam cálculos, certos de não possuírem tempo útil de vida para verem a luz no fim do túnel outra vez. Os de meia-idade, como eu, temiam chegarem idosos a 2026 para, na melhor das hipóteses, depositarem seu voto impresso na urna. De todas as idades que atravessaram a temporada de trevas, destaco a dos que entraram na adolescência em 2013 e alcançaram a maioridade no ano que se encerra.

Falo dos que me cercam, alvos da Brasil Paralelo e da Jovem Pan. Moços finos, que deixaram a infância no impeachment de Dilma e jamais viram a política ser exercida com sobriedade e respeito. Pegos pela pandemia, eles cumpriram dois anos de ensino superior remoto, afastados do campus, e costumam formar opinião na timeline que os congrega.

Os do curso de administração —vertente técnica do de economia— exibem lacunas preocupantes em história, sociologia, filosofia, arte e direito. Pragmáticos, são formados em estatísticas, projeções e planilhas, identificando, no estouro do teto de gastos do famigerado PT, a face do bicho papão.

"É... Rumo à Venezuela!", lamentou o jovem M. após o pleito, indiferente ao apoio da velha guarda de Armínio Fraga, André Lara Resende, Pérsio Arida, Malan e Meirelles ao presidente eleito. Nas costas do moleque, a TV ligada nos baderneiros golpistas, na leniência da PRF, no silêncio do perdedor. Debaixo do seu nariz, os ataques ao TSE e ao STF, a CPI da Covid, o desregro na educação, o mercado das bíblias, o Philishave de Ricardo Salles. A "venezuelização" em curso, e o imberbe M. lobotomizado pelo quadrado que o compete.

C. é amigo de M. desde o maternal. Recém-graduado em filosofia, C. leu Platão e Hannah Arendt na faculdade e acompanhou as aulas de Déborah Danowski sobre negacionismo. C. sente na pele os cortes das bolsas de pesquisa e sustento da academia.

Cada um é livre para votar em quem bem entender, mas essa eleição superou a questão do foro íntimo. O liberalismo meritocrático de M., com vista grossa para os riscos da ascensão da extrema direita tupiniquim, é um tiro no peito de C. No dele e no de muita gente. A discordância não abalou a amizade, mas criou um afastamento. Pela primeira vez, por razões sociais, culturais, políticas e econômicas, os dois se viram em trincheiras opostas.

A frente ampla, costurada por Lula, acena com trégua e diálogo. M. e C. precisam. E mesmo a eleição de Tarcísio para o governo de São Paulo é bem-vinda, se apontar para uma direita menos torta e perversa, que sirva de sossega-leão para os órfãos do fanatismo.

Eu estaria soltando rojão, não fosse a notícia de que o desencarnado tem planos de se candidatar para a prefeitura do Rio de Janeiro. Mando notícias da Faixa de Gaza.

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