Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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É preciso ser leão para sobreviver na savana em meio ao incêndio

Tiro quatro meses para encarnar uma das mulheres mais extraordinárias deste país

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Guilherme Ravache escreveu uma reportagem excelente no UOL sobre as mudanças do mercado de audiovisual, tendo como marco a saída de Ricardo Waddington da TV Globo e de Sílvio de Abreu da HBO.

O antigo modelo de contratação com exclusividade de talentos a longo prazo, baseado no dos grandes estúdios da Hollywood da década de 1940, adotado por décadas pela Globo e imaginado por Sílvio na HBO, se mostra, hoje, inviável do ponto de vista financeiro.

A princípio acreditava-se que a chegada das gigantes do streaming ao Brasil —Netflix, HBO, Amazon Prime, para citar algumas— resultaria numa concorrência mais acirrada e na valorização de artistas tupiniquins. Quis o destino que revolução midiática aportasse por essas bandas justo no momento do estouro mundial da bolha do setor.

Antes que o esperado, o patrão garantidor do contracheque do fim do mês teve de ser substituído por aquilo que Antonio Prata chamou de uberização da indústria, com a adoção da contratação por obra certa em larga escala.

As péssimas projeções para 2023 surpreenderam os próprios CEOs das empresas, que se viram obrigados a reduzir custos em tempo recorde. No último trimestre de 2022, a tempestade perfeita acarretou a paralisação de produções em andamento, demissões em massa e o adiamento de projetos em curso.

Sobre um fundo branco, emoldurado com uma moldura cor de laranja desenhada à mão, sem precisão, a palavra ARTISTAS toma a ilustração de fora a fora, escrita à mão, cada letra num estilo e cor diversa. Por detrás da palavra, um imenso par de braços estilizado abraça todas as letras, de fora a fora, sugerindo união.
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres de 29 de março de 2023 - Marta Mello

Sou testemunha viva da guinada abrupta. Com um contrato de dois anos na TV Globo, com término previsto para o fim do ano passado, procurei meu contratante em agosto para saber se a opção de mais um ano seria exercida. Para a minha surpresa, a resposta foi que sim, o contrato seria estendido. No entanto, em meados de dezembro, quatro meses após a consulta, fui avisada de que estaria livre a partir de janeiro.

É preciso ser leão para sobreviver na savana em meio ao incêndio.

Estou certa de que não houve prazer, por parte dos executivos, em me dar a notícia. Todos enfrentavam uma crise aguda, que exigia ação urgente. A contratação por obra certa nunca me assustou. Desde o remake de "Selva de Pedra", em 1986, ela foi a regra que norteou minha carreira.

Heroína do folhetim, fui uma péssima funcionária, dei defeito e tornei difícil um trabalho árduo não só para mim como para os que me cercavam. Toni Ramos que o diga. A imaturidade me custou uma geladeira de 15 anos, que só terminaria com o sucesso de "Os Normais".

E mesmo após "Os Normais", quando achei que fecharia um contrato fixo, a expectativa não se confirmou. O trauma de "Selva de Pedra" me tornara arredia às novelas, coluna de sustentação da programação, e o acordo de longo prazo só faria sentido para a casa com uma ou mais telenovelas incluídas no pacote. Sem segurança de emprego, fiz cinema, teatro, eventos, comerciais e aprendi a ser produtora de mim mesma.

Sete anos se passariam até que surgisse outra oportunidade na televisão, com o seriado "Tapas e Beijos". Os cinco anos de boa audiência me proporcionaram o primeiro contrato de longo prazo, renovado graças ao interesse do Globoplay de adaptar "Fim", meu romance de estreia, para uma série de dez episódios.

Vani (Fernanda Torres) e Rui (Luiz Fernando Guimarães) em cena de "Os Normais" - João Miguel Júnior/Globo

Devo à TV Globo ter atravessado a pandemia com a paz de um salário mensal e ainda me sinto parceira de uma produtora que contribuiu para que o Brasil se transformasse num país consumidor de seus próprios dramas.

Hoje, livre da exclusividade, sei que a ameaça da uberização só será evitada com o fortalecimento das produtoras independentes. A O2, a Conspiração Filmes, o Porta dos Fundos, a Gullani e a Casa de Cinema, entre outras, são as nossas United Artists, e é a elas que os artistas devem recorrer para enfrentar o achatamento salarial.

Não à toa, o governo anterior, tão afeito à uberização, retirou as produtoras independentes da mesa de negociação sobre a regulamentação do mercado de streaming no Brasil. Com Lula de volta ao Planalto, a reaproximação se fez possível, graças à consciência de que é necessário ouvi-las.

Para os que embarcaram na falácia de que cultura é sinônimo de mama-tetas do erário, esclareço que tudo o que discuto aqui é livre mercado, gerador de oportunidade e emprego.

A escrita foi uma das mil portas que abri na vida para não depender da boa vontade de um patrão. Escrevi livros, roteiros, programas e, por 13 anos, mantive colunas na Folha enquanto me desdobrava como atriz. Agora, pela primeira vez, me sinto incapaz de equilibrar mais de um prato no ar.

Tiro quatro meses de recesso deste espaço para dar conta de encarnar no cinema uma das mulheres mais discretas e extraordinárias que este país já conheceu, a Antígona Eunice Paiva.

Volto em agosto, por certo, mudada.

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Eunice Paiva, acompanhada do filho Marcelo Rubens Paiva, recebe a certidão de óbito de Rubens Paiva, seu marido, desaparecido em 1971, durante a ditadura militar - Eduardo Knapp - 23.fev.96/Folhapress

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