Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres
Descrição de chapéu jornalismo mídia

Demissões mostram um mundo rico em planilhas, mas pobre em humanidade

Apesar de ter se tornado sinônimo de eficiência, indiferença aponta para relação desumana, contra a qual é preciso lutar

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As previsões econômicas para o próximo ano devem ser mesmo sofríveis, a julgar pela guilhotina geral, que cortou cabeças nas mais variadas empresas do setor de audiovisual e jornalismo. Demissões sumárias ocorreram na TV Globo, na TV Record e na Folha. Trata-se de um misto de ajuste financeiro com receio da volta do PT ao poder, acredito.

Era uma guinada esperada desde o surgimento das novas mídias, que transformaram a maneira de se consumir entretenimento e notícia. E para tornar ainda mais melancólico o Natal dos demitidos, a reviravolta se concretizou em meio ao estouro da bolha do mercado de streaming.

O faturamento trimestral da Warner Bros. Discovery entrou no vermelho após a compra da HBO Max. O rombo obrigou o novo conglomerado midiático a fundir as operações da companhia, provocando a interrupção de projetos já em andamento nos diversos países em que opera.

Publicada nesta quarta-feira, 21 de dezembro de 2022
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres - Marta Mello

A Netflix projetou um número de assinaturas baseado na alta do consumo durante a pandemia, cálculo que não se confirmou na prática, levando a empresa a rever seus planos expansionistas. Assim como com a HBO Max, a operação no Brasil sofreu redução para baixo.

Por décadas, a TV Globo trabalhou em esquema de monocultura, dominando tanto a produção de conteúdo, quanto o controle da emissão do sinal de TV aberta. Os 100% de audiência do período de ouro da empresa possibilitaram uma lógica de contratação à la Metro-Goldwyn-Mayer, com acordos quase vitalícios de exclusividade e uma liberdade de criação de quem não possuía concorrentes à altura. "Morte e Vida Severina", "Grande Sertão: Veredas" e "Os Maias" são bons frutos deste reinado.

Hoje, os realities se firmam como o melhor custo-benefício da praça, com participantes 0800 a se engalfinhar pelo prêmio gordo e merchandising correndo solto dentro do próprio programa.

Jamais esqueci de um quadro do BBB em que os concorrentes, à moda do filme "A Noite dos Desesperados", de Sydney Pollack, se agarravam a um poste inflável com o nome do patrocinador. O último a largar o dito ganhava um celular, ou algo que o valha. Para um ator, seria difícil aceitar tão vil papel. Mas vivemos neste novo "mondo cani", onde a ficção perde de mil para a realidade cruel.

Com a internet, as TVs abertas perderam a hegemonia do sinal de retransmissão para as teles. Embora ainda domine cerca de 30% do mercado brasileiro, algo impensável em outros países, a TV Globo se viu privada de uma fatia importante dos consumidores.

Antes, sem uma campanha massiva no horário nobre, ou uma página impressa em um jornal de grande circulação, era impossível divulgar um produto. Agora, as marcas preferem investir nas redes de forma direcionada e menos custosa, o que diminuiu a margem de lucro dos gigantes da comunicação.

Não é fácil cortar na carne, mas nada justifica a demissão repentina de um jornalista do porte de Janio de Freitas. A queda na receita foi a razão alegada para o afastamento de um nonagenário com mais de 40 anos de serviços prestados à Folha e ao país. Janio é indemissível, mas vivemos tempos sombrios, que desconhecem o reconhecimento e o respeito.

Os fatos recentíssimos apontam para um futuro empobrecido, tanto no valor pago aos profissionais, quanto na qualidade da criação e da informação. Nesse mundo dominado por blogueiros e celebridades da ora, a intimidade da casa, dos cônjuges, dos filhos e netos é moeda de troca dos likes. Quem se habilita?

O pragmatismo econômico que afastou Janio de Freitas da Folha é o mesmo que aceita 20 anos de congelamento no investimento da União em educação e saúde. Alguém tem que pagar a conta, é verdade, mas a crise exige dos gestores públicos e privados responsabilidade e decência. Porque apesar da indiferença ser, hoje, sinônimo de eficiência, ela aponta para uma relação de poder desumana, contra a qual é preciso lutar. E não só no setor que me cabe.

Estou em Lisboa com minha mãe. Chegamos a tempo de visitar Nélida Piñon no hospital, um dia antes da imortal nos deixar. Estávamos de mãos dadas com a enferma, quando adentrou o quarto uma senhora portuguesa, médica, que acalentou Nélida com a força de uma guia espiritual.

Enquanto acarinhava a paciente, a doutora Maria José falou de forma aberta sobre o fim que se aproximava. Foi de cortar o coração. Via-se que Maria José possuía um sentido profundo do seu ofício que ultrapassava, e muito, o domínio técnico.

É de uma grandeza assim que esse presente tão rico em planilhas e estatísticas, e tão pobre em humanidade, lisura e nobreza carece. Saio de férias por um mês. A direção da Folha que me perdoe a crônica, mas é preciso sonhar com um porvir menos brutal.

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