Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

A nossa velha pulsão de morte

Flerta-se com a possibilidade do extermínio sumário das nossas Faixas de Gaza

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Li "Guerra e Paz" tardiamente, intimidada tanto pelas mais de 1.500 páginas da obra-prima de Tolstói quanto pelo glossário de nomes, sobrenomes e apelidos do romance.

O príncipe Nicolai Andreiévitch Bolkónski pode aparecer como o Príncipe, ou Nicolai, ou Andreiévitch ou Bolkónski; pai de outro príncipe, Andrei, também Bolkónski, que além de atender pelas mesmas alcunhas do genitor, volta e meia é chamado de Nicolaiévich, filho de Nicolai.

Para não se perder no enredo, é aconselhável ter uma tabela periódica dos personagens à mão. Uma vez vencida a dificuldade, no entanto, "Guerra e Paz" se revela um daqueles amigos inesquecíveis, dos quais o leitor sente saudade mesmo antes de virar a última página.

O que a minha ignorância não contava era que, ao fim da saga, Tolstói arrematasse o livro com uma tese sobre a vontade inarredável dos povos. Segundo a teoria, Napoleão seria mero agente de uma ânsia coletiva da população de se mover para o leste, assim como a resistência de Kutuzov e a subsequente vitória de Wellington, em Waterloo, seria o contrafluxo desse impulso, em direção ao oeste.

As guinadas da história seriam causadas menos pela ambição, estratégia ou o poder de heróis revolucionários, generais e imperadores e mais pelo somatório dos ínfimos desejos da manada de Zé Ninguéns.

Uma mancha em tons de cinza ocupa quase todo o fundo branco. Vemos rostos e corpos de tamanhos variados se sobrepondo, apenas delineados, sem muito detalhe. A mancha cinza insinua, de forma sintética, uma rua ou espaço público amplo urbano. Os rostos e corpos em movimento expressam medo, insegurança, ferocidade, desespero, tristeza, buscando evocar sofrimento agudo e intenso causado por opressão em situações de guerras e confrontos urbanos.
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres de 20 de março de 2024 - Marta Mello/Folhapress

"Chegando ao infinitamente pequeno, a Matemática, a mais exata das ciências, […] adota o novo método da totalização das incógnitas infinitamente pequenas. […] Se o objetivo da História é o estudo do movimento dos povos e da Humanidade, e não descrever episódios da vida de alguns homens, ela deve […] pesquisar as leis comuns a todos os elementos de liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre si."

A tentativa de Tolstói de submeter a história aos infinitesimais da matemática lhe valeu críticas de aberração determinista, charlatanismo, farsa e fatalismo, partidas de filósofos e escritores peso-pesado, que apesar de o admirarem como artista desprezaram-no como pensador.

Quem sou eu para discordar de Flaubert e Turgueniev? Mas meu catastrofismo enxerga valor na afirmação do gênio. Há impulsos incontroláveis que nos movem e nos impelem, muitas vezes, na direção do infortúnio.

Tolstói morreu em 1910 e não viveu as duas grandes guerras do século 20, que elevaram ao absurdo a oscilação para leste e oeste descrita pelo escritor.

As tensões que levaram a Europa ao autoaniquilamento já estavam latentes no século 19. O nacionalismo, o antissemitismo arraigado, o expansionismo, a disputa pela supremacia do continente, o temor da Rússia, a corrida armamentista, a Revolução Industrial, o endividamento das nações, a desigualdade social e a insurreição da plebe.

A velha ordem, calcada no valor da terra e na hierarquia monárquica e religiosa, feneceu e a Europa se viu ameaçada pela instabilidade social e política, além de regida por uma economia volátil, que desconhecia fronteiras.

A insegurança fez germinar, no estômago de cada europeu, a necessidade de eliminar o inimigo, fosse ele o vizinho, o país fronteiriço, o partido oposto, o miserável do gueto ou o seguidor de outro deus. Uma sanha que, atravessado o século, encontraria em Adolf Hitler a sua mais completa tradução.

Hoje, assim como no século 19, vivemos o fim do mundo como o conhecemos, abatidos por um sentimento de falência e medo. Munidos de smartphones, manifestamos nosso pânico, raiva e incerteza na nuvem, num perpétuo estado de plebiscito que glorificou o extremismo.

Tarcísio de Freitas não posa de mito e bem poderia ter dado uma declaração vaselina ao rebater as críticas feitas à truculência da ação da polícia na Operação Verão, na Baixada Santista, mas não. Depois de ressaltar o apoio que recebeu dos empresários, o governador mandou para o raio que os parta os descontentes, arrematando com um "não estou nem aí".

De fato, exausta e descrente de uma solução factível para o problema crônico da miséria e da segurança pública, parte relevante do eleitorado flerta com a possibilidade do extermínio sumário das Faixas de Gaza do país.

Tolstói tem lá sua razão. Não são Putin, o Hamas, Netanyahu, Trump, Erdogan, Kim Jong-un, Noriega, Maduro, Messias, Braga Netto, Heleno, Milei e o Chega, somos nós mesmos e a nossa velha pulsão de morte.

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