Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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Fernando Schüler

O governo entregou tudo, com o apoio de todos

Queremos um Estado grande e onipresente, mas não estamos dispostos a assumir o ônus

A pesquisa Datafolha sobre a greve dos caminhoneiros é um retrato bem acabado da crise brasileira --87% das pessoas dizem apoiar o movimento e suas reivindicações, só não querem pagar a conta.

Os mesmíssimos 87% dizem ser contra cortes no Orçamento ou aumentos de impostos para resolver o problema dos caminhoneiros. Seguramente imaginam que o dinheiro sairá da cartola de algum coelho gigante, escondido atrás do Palácio do Planalto.

Tudo isso me fez lembrar as manifestações de 2013, quando a palavra de ordem “contra o dinheiro público nos estádios da Copa” convivia alegremente com o slogan “não à privatização do Maracanã”. À época, tentei entender como as pessoas pensavam que o estádio poderia ser administrado sem dinheiro público e sem o setor privado. Depois desisti, talvez por falta de imaginação.

Vai aí um traço de nossa cultura política, escancarado no debate histérico que tomou conta do país nesta última semana: queremos ao mesmo tempo um Estado grande e onipresente, capaz de resolver o problema de cada setor econômico, mas não estamos dispostos a assumir o ônus dessa escolha.

Diria que o problema é bem mais amplo. O debate em torno da greve dos caminhoneiros mostrou, mais uma vez, que nos tornamos uma democracia polarizada e instável. Uma democracia em que não há consensos mínimos sobre modelo de Estado ou até que ponto desejamos ser uma economia de mercado. E ainda, é triste constatar, sobre a própria virtude da democracia política.

É evidente que boa parte da discurseira pedindo uma intervenção militar, assim como sua prima-irmã, a narrativa do “golpe”, não passa de retórica vazia, típica destes tempos de democracia digital. Mas há um sintoma aí.

Quando coisas desse tipo passam a ocupar espaço e exigir uma resposta oficial, como a que foi dada pelo general Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, é preciso prestar atenção e dizer que eventualmente a brincadeira já perdeu a graça.

A greve mostrou, mais uma vez, a imensa fragilidade do Estado brasileiro diante de grupos organizados de pressão. É certo que há aí um movimento de novo tipo, feito em rede, com imensa capacidade de afetar a economia e o cotidiano das pessoas.

Mas o que se viu foi uma rendição pura e simples do Estado diante do movimento. Uma rendição feita com o apoio da sociedade. Apoio do sistema político, dos partidos, dos pré-candidatos à Presidência e de boa parte do jornalismo de opinião.

Não passa de um imenso exercício de cinismo a gritaria generalizada exigindo que o governo resolvesse o problema e, ato seguinte, uma nova gritaria acusando o mesmo governo de fraqueza e incompetência por fazer o que todos, ou quase todos, desejavam que ele fizesse: simplesmente atender uma a uma a todas as demandas do movimento.

Vai aí o traço de nossa democracia instável: de um quase consenso crítico em relação ao controle de preços e à ingerência política na gestão da Petrobras (marcas do governo anterior), passamos a uma corrida desenfreada do Congresso para aprovar o tabelamento estatal do preço do frete, no transporte rodoviário, e do governo para congelar o preço do combustível na bomba e retomar o controle de preços via aporte maciço de dinheiro público, que ninguém sabe ao certo de onde vai sair.

Isto é: de um breve hiato simpático a reformas estruturais, marcado por avanços ainda tímidos, como a PEC do teto e a reforma trabalhista, voltamos rápida e alegremente ao bom e velho padrão populista.

Tranquilizador seria se este giro fosse apenas responsabilidade do governo federal, como tenta fazer crer boa parte de nosso sistema político malandro. Mas não é. O vezo populista, com sua visão providencial do Estado e desprezo pela restrição orçamentária, está entranhado em nossa liderança política, e de um modo mais geral, em nossa cultura pública.

O resultado é que, mais uma vez, o contribuinte irá pagar a conta. E entraremos em mais uma campanha eleitoral como zumbis, presos a uma lógica dos anos 50, sem discutir como criar um mercado aberto e competitivo no setor de petróleo.

O Brasil anda seduzido pela pequena guerra política e pela retórica do caos. Não é plausível, nas grandes democracias, exigir racionalidade da multidão que grita o tempo todo, na internet.

O que a democracia exige, sim, é uma liderança política capaz de dialogar com racionalidade e moderação, e produzir consensos mínimos. A começar sobre o valor da democracia, coisa que parece estarmos aprendendo lentamente a relativizar, no Brasil de hoje.

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