Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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Fernando Schüler

O Brasil não deveria ser tratado como uma república de bananas

Soubemos respeitar uma rigorosa alternância de poder e sobrevivemos a dois processos de impeachment

Sempre apreciei a convivência com o professor Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano e autor de bons livros, como "Utopia Desarmada". Ontem me surpreendi com seu artigo no The New York Times sustentando a posição de que o Brasil deve permitir a candidatura de Lula à Presidência da República.

Seu artigo vai na mesma linha da recente nota do Comitê de Direitos Humanos da ONU (não confundir com o Conselho de Direitos Humanos). Ambos não dão muita bola para pormenores da vida brasileira, como a Lei da Ficha Limpa, nem se preocupam muito em especificar a quem se dirigem quando falam que “o Brasil deveria fazer” alguma coisa.

Talvez devessem se dirigir à ministra Cármen Lúcia, visto que o assunto está com o Judiciário, um poder independente, mas intuo que ambos não estejam muito preocupados com detalhes desse tipo.

Na lógica de Castañeda, não há propriamente um sistema Judiciário no país, com regras, autonomia e hierarquia. Há um “debate”. Há argumentos que apontam uma perseguição do juiz Sergio Moro a Lula, há uma campanha internacional a seu favor, contando inclusive com uma carta do senador Bernie Sanders, e há mesmo uma reunião em que o papa teria escutado com atenção alguns aliados do ex-presidente.

A parte do senador Bernie Sanders me pareceu particularmente curiosa. Quem é essa gente, parece dizer Castañeda, quem são esses juízes brasileiros para julgar, ou este Congresso para fazer uma lei como a da ficha limpa, se o próprio senador americano se manifestou.

Castañeda comete um equívoco que vem pautando boa parte do barulho externo sobre o caso Lula: ele compra a retórica de campanha do ex-presidente pelo valor de face. Sugere que poderia ser “pesado demais” para a democracia brasileira caso Lula não concorra e não consiga eleger seu substituto, e que os fãs do ex-presidente poderiam se sentir privados do direito de votar.

Há muitas coisas interessantes a observar nesta linha de argumentação. Em primeiro lugar, a visão algo fantasiosa do que se passa no Brasil. A começar pela confusão elementar entre “povo” ou “sociedade” e a militância organizada e relativamente restrita (ainda que ativa e barulhenta) de um partido politico, seja ele qual for. Ativismo e retórica são essenciais na democracia, mas não a definem.

Em segundo lugar, há um problema evidente de equidade. As mesmas regras deveriam valer para todos (incluindo personagens pelos quais Castañeda ou o comitê da ONU, imagino, não teriam lá grande simpatia), ou deveríamos instituir no país um direito próprio para quem tem militância e algum apoio externo?

Por fim, aposta-se na ideia difusa de que somos um país feito de uma elite política degenerada, com os juízes no comando e funcionando como “árbitros das eleições”. Uma espécie de república de bananas gigante, cujas leis e instituições não mereceriam ser levadas muito a sério.

O ponto é que vai aí uma visão fantasiosa sobre Brasil, a qual deveríamos rechaçar em respeito àquilo que nós mesmos soubemos construir nestas mais de três décadas de democracia.

Uma democracia com muitos defeitos, a começar pela falta de consenso sobre o que deve, afinal, ser reformado em nosso sistema político. Vai daí o fato óbvio de que precisamos dobrar a aposta na moderação e no diálogo, e não jogar mais lenha na fogueira.

Um bom ponto de partida seria observar o país sob o prisma daquilo que o país construiu na história recente. A Constituição de 1988 completa 30 anos, em nosso mais longo período de normalidade democrática. Soubemos respeitar uma rigorosa alternância de poder e sobrevivemos a dois processos de impeachment. Consolidamos instituições independentes, o que no fundo é o que parece incomodar muita gente.

E, em nenhum momento, ao menos até agora, estivemos diante de uma escolha entre a democracia e o Estado de Direito, como sugere o professor Castañeda. Mesmo porque, no mundo moderno, do qual felizmente fazemos parte, essas coisas necessariamente andam de mãos dadas.

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