Flávia Boggio

Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

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Flávia Boggio
Descrição de chapéu

Meu encosto de estimação

Jorge, como decidi chamá-lo, era parceirão demais

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Existe uma teoria que defende que qualquer pessoa, no fundo, é religiosa quando: a panela de pressão apita, chega resultado de hemograma ou enfrenta um fossa brava.

Sou a prova de que a teoria é verdadeira. Passei grande parte da minha vida sem pensar em religião. Meus pais seguiam a linha antirrótulos e, assim como furos na orelha e roupas de gênero, achavam que eu deveria decidir por conta própria qual caminho espiritual seguir.

Cresci, larguei os moletons e furei as orelhas. Mas continuei sem religião.

Após uma sucessão de catástrofes pessoais, comecei a suspeitar que o universo não estava muito do meu lado. 

Incentivada por amigos, resolvi procurar algum norte espiritual. Visitei astrólogos, tarólogos, fui a encontros em templos budistas, fiz uma verdadeira salada mística. Até conhecer Jorge.

Foi durante uma sessão com uma terapeuta-maga-espírita-holística-ou-algo-que-indicam-quando-estamos-desesperados-e-topamos-porque-afinal-estamos-desesperados. Após banhos de incensos e rezas, a “terapeuta” veio com um diagnóstico: eu estava com um “colega indesejado”.

Segundo ela, a alma penada encasquetou comigo há uns 120 anos e fazia de tudo para que meus relacionamentos amorosos fracassassem. A entidade também se aproximava em momentos de fragilidade espiritual e noites de drinques, “porque eles adoram uma cachacinha”, completou a terapeuta.

Sim, eu tinha um encosto e precisava me livrar dele.

Ilustração
Galvão Bertazzi/Folhapress

Saí de lá pensativa. Quem toparia ficar comigo por 120 anos? Me levar para tomar drinques nos momentos de fossa? Aquele encosto não era ruim. Pelo contrário. Jorge, como decidi chamá-lo, era parceirão demais.

Vivemos juntos, felizes, por alguns anos. Levei Jorge para muitas aventuras. Ele me livrou de inúmeras 
enrascadas amorosas. 

Até um certo dia, sem avisar, o meu encosto de estimação se foi. 

Talvez ele tenha se assustado com o compromisso sério. Ou encontrado alguém com a panela de pressão apitando mais do que a minha. Ou, o mais provável, Jorge tenha percebido que, com os vivos que temos neste mundo encarnado afora, ser apenas um encosto já não é mais o suficiente.

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