Na cobertura do debate que envolve os deputados que votaram contra a orientação de seus partidos na reforma da Previdência, surpreende o espaço dado pela imprensa à deputada pelo PDT de São Paulo Tabata Amaral.
Na Folha, em que ela é também colunista, reportagens sobre o “caso Tabata”, como foi batizado, saíram dez dias seguidos nas páginas do jornal, pelo menos entre quinta-feira (11) e sábado (20).
Nas redes sociais, um dado sintetiza essa exposição: a congressista foi citada 239 mil vezes no Twitter entre os dias 11 e 19, segundo a FGV-DAPP, a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas.
O volume, bastante expressivo para um ator político, aproxima-se do alcance de nomes como os dos filhos do presidente Jair Bolsonaro.
A deputada virou símbolo da desobediência aos partidos no processo de votação da reforma da Previdência. O que acharam seus eleitores? Não se sabe exatamente.
Tampouco se sabe quem foram os outros parlamentares que descumpriram a orientação de seus partidos.
No geral, os que aprovam a reforma da Previdência automaticamente aprovaram o gesto da deputada, visto como heroico, em nome do Brasil. Já os que desaprovam as mudanças viram nele oportunismo e traição.
Desconfio de personalismos e acho pouco produtiva a necessidade de eleger heróis numa Câmara formada por outros 512 deputados eleitos.
A imprensa como um todo, inclusive a Folha, não se cansou de expor nome e imagem, talvez em busca dos cliques que pode atrair uma jovem com uma história de superação comovente e um currículo impecável em que se inclui a mítica Universidade Harvard.
Como consequência, na cobertura geral do caso, em jornais e na tevê paga, sobraram simplificações. Com poucas variações, li e ouvi que congressistas não deveriam se submeter a pessoas que se acham donas do pensamento alheio e que os partidos tradicionais, defasados, teriam perdido a sintonia com os seus eleitores.
Acho que o leitor (ou o espectador) merece mais elementos para a reflexão.
Desde a redemocratização, muito se discutiu sobre a fragilidade dos partidos políticos brasileiros, em sua maioria vistos como incapazes de oferecer ao eleitor um programa bem definido e, consequentemente, nortear a adesão dos seus filiados ao programa escolhido.
Diante dos últimos acontecimentos, percebe-se que essa vontade de contar com partidos fortes é volúvel, a depender dos atores envolvidos. Critica-se a indisciplina dos partidos, mas, quando estes cobram disciplina de seus filiados, há descontentamento.
Partidos exigem de seus membros fidelidade a suas posições, assim como filiados querem autonomia —tensão que se resolve na prática.
Também foi dito que os partidos perderam o contato com o desejo da população e que os movimentos de renovação (a tal “nova política”) vêm tomando o lugar das siglas tradicionais —seja por meio de grupos, seja pela ideia de mandatos coletivos, mais à esquerda no espectro político.
Embora tenha pouca coisa de novo, a tentativa de renovação é normal e esperada em um contexto no qual os eleitores clamam por isso. A imprensa fazer desses movimentos —ou de indivíduos— a salvação do sistema político nacional é que não soa bem.
Os movimentos participam direta e abertamente do processo eleitoral. Muitos são financiados por empresários e têm diretrizes claras —como o apoio à reforma previdenciária.
Segundo cientistas políticos ouvidos pela coluna, em vez de financiar partidos, esses grupos de pressão passaram a recrutar quadros e financiar a sua formação.
Se esses grupos —assim como os partidos— vão conseguir definir as suas pautas e ser capazes de agir coletivamente, como agentes da renovação, é algo ainda a ser provado.
Alguns deputados vieram de fora do sistema, têm recebido ampla aprovação e podem mesmo representar algo de novo. No entanto, dividem a ribalta com políticos experimentados.
Segundo o levantamento da FGV, só há um outro parlamentar tão citado como a deputada nas redes sociais nos últimos dias: Rodrigo Maia. Como é sabido, o presidente da Câmara é filho de um político de longa data (o ex-prefeito do Rio, Cesar Maia), e foi o ator mais importante na votação do texto-base da reforma.
A imprensa não pode recorrer a expedientes fáceis e fazer um jornalismo simplório, valendo-se de uma narrativa infantil que opõe a boa à má ou a velha à nova política (que, estranhamente, pode incluir políticos tão diferentes como Tabata e Bolsonaro).
Esse tipo de simplificação libera o jornalismo de fazer uma cobertura mais ampla de um cenário complexo e formado por múltiplos atores, além de negligenciar, pelo menos, uma centena de parlamentares da oposição —muitos certamente com algo a dizer.
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