Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Confusão dentro de casa

Quando se trata de notícias sobre quem dá a notícia, discrição pode falar mais alto

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Soube-se nesta semana que um apresentador da TV Globo pediu demissão após vir à tona que, nos últimos anos, fechou contratos milionários de prestação de serviço com um banco e uma seguradora de saúde, segundo o site Notícias da TV.

O apresentador de telejornal tem uma empresa com cerca de 30 profissionais e, entre outras atividades, produziu conteúdo e prestou assessoria de imprensa para companhias.

Ilustração de Carvall para coluna da ombudsman de 4.ago.2019.
Carvall

A Folha contou a história na capa da Ilustrada de sexta-feira (2), o que, de certa forma, surpreendeu positivamente: quando se trata de notícias sobre quem dá a notícia, não é raro que a discrição e o corporativismo acabem falando mais alto. 

O jornal poderia ter explicado ao leitor qual a sua posição quando o assunto é conflito de interesses dentro da Redação.

Não é de hoje que jornalistas têm mais de uma ocupação, algumas vezes conflitantes entre si. A diferença é que antes ninguém enxergava isso como um problema.

No Brasil, o esforço para regulamentar o conflito de interesses no jornalismo é relativamente recente.

Há 30 ou 40 anos, era comum ter repórteres em Brasília ou em cidades menores que atuavam em Redações e, ao mesmo tempo, prestavam assessoria para prefeitos, senadores, deputados ou vereadores.

Também era frequente um repórter viajar para cobrir determinada partida de futebol à custa de um dos times.

Muitas vezes, esses casos encontravam respaldo nos baixos salários pagos à categoria.

No caso em questão, porém, o valor dos trabalhos não pode nem de longe ser comparado a um bico que o jornalista faz para completar o salário.

 

Por que uma empresa paga tanto a um jornalista como esse? Outra pergunta: um repórter pode prestar um serviço para uma empresa, receber um pagamento que equivale a muitas vezes o seu salário e, ainda assim, não deixar seu senso crítico de lado?

Começando pela última pergunta, creio que sim.

Como ao leitor não é possível entender, caso a caso, em que medida o seu interesse está sendo afetado, o melhor é que regras claras sejam estabelecidas—e conhecidas por ele.

Nos principais jornais americanos, um trabalho externo deve ser aprovado por um superior e quase sempre é limitado a coisas como ensino ou um artigo para outra publicação. Certamente isso não inclui publicidade, me disse um ex-ombudsman de um grande veículo de comunicação.

O Manual da Redação da Folha diz que, desde que não haja conflito de interesses, o jornal pode permitir a atuação remunerada de seus profissionais convidados a dar palestras ou apresentar eventos.

Por outro lado, a Folha desestimula que jornalistas aceitem presentes, com exceções que não ultrapassem 25% do salário mínimo.

E proíbe expressamente que o jornalista treine pessoas para lidar com meios de comunicação, faça anúncios comerciais, promova marcas ou produtos e elabore textos de divulgação, assinados ou não.

O caso que envolve o apresentador é grave. Qualquer repórter sabe que não é viável prestar assessoria de imprensa—que nada mais é do que cuidar da relação entre a empresa e a mídia—e, ao mesmo tempo, fazer parte da Redação de um jornal sem que a sua isenção fique comprometida.

Em resposta, o diretor de jornalismo da Globo, Ali Kamel, informou que um comunicado detalhado deve reiterar o que é ou não proibido aos jornalistas da emissora, dado que dúvidas persistem sobre como agir em caso de convites.

Existem gradações ao abordar o conflito de interesses no relacionamento entre jornalistas e suas fontes, dizem acadêmicos ouvidos pela coluna.

No caso de uma viagem, por exemplo, o ideal seria que o jornal pagasse toda a despesa.

Como isso nem sempre acontece, deixar claro que o repórter viajou a convite da empresa, como faz a Folha, é visto como prova de boa-fé. Muitos leitores, porém, não gostam.

No geral, jornalistas são procurados por empresas não jornalísticas porque são vistos como imparciais e têm credibilidade—algo duro de conseguir, mas bem fácil de perder.

Essas empresas pagam quantidades tão altas a alguns profissionais do jornalismo, provavelmente, porque são pessoas com visibilidade muitas vezes tão grande quanto a de um pop star. 

Mas, diferentemente do pop star, a imagem do jornalista é construída por meio da boa técnica para prestar um serviço ao espectador ou ao leitor. 

Ou seja, o jornalista oferece seriedade e ainda conhece bem o funcionamento dos meios de comunicação. Será que isso está à venda?

Em uma época em que o jornalismo é constantemente posto em xeque, tudo de que o leitor não precisa é enxergar ambiguidade numa relação (a do jornalista e sua fonte) que deve ser tão transparente quanto possível.

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