Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
Descrição de chapéu machismo

Sejamos todos vagabundas

A ideia de vagar a esmo é maravilhosa, pena que não conste no verbete feminino

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Esses dias eu estava na frente de um bar, esperando um táxi. De repente, um cara que estava na calçada, perto de mim, gritou para uma mulher que se afastava: vagabunda! A palavra doeu no meu ouvido. O meu lado inocente esperava que o verbete já estivesse caindo em desuso. O meu outro lado só fitou o sujeito: aspecto de bêbado, voltando para uma mesa cheia de outras mulheres.

Não serei moralista de julgá-lo, até porque 1: adoro caminhar bêbada em direção ao sexo oposto; 2: estaria incorrendo no mesmo erro que ele. Portanto, limito-me a dissecar esse Homo patricarcalis inserindo o bisturi no campo da linguagem.

A autora suíça Isabelle Eberhardt (1877-1904) publicou contos sob pseudônimo masculino e se vestiu de marinheiro para poder viajar livremente - Louis David/Wikimedia Commons

O que ele quis dizer com vagabunda? Até um bebê brasileiro tem certa noção, mas vamos ao Aurélio. "Vagabunda [Fem. De vagabundo] 1. Zool. Formiga ponerínea (Pachycondylus striata). 2. Gír. V piranha." Estaria o sujeito com quem cruzei na rua chamando a mulher de formiga? Vai, Pachycondylus striata! Dificilmente. O xingamento está mais para o segundo sentido da palavra, que nem o próprio Aurélio teve coragem de definir, apelando para um sinônimo. Vou dar uma força para o linguista: 3. mulher que transa com muitas pessoas.

Agora vamos voltar ao sujeito que retornou para a mesa cheia de mulheres. Não sei se ele transa com muitas pessoas, mas estava tentando, como pude observar ao vê-lo roçar sua cauda de pavão nos ombros da morena e depois na loira que estava ao seu lado. O que é muito natural, afinal, todo adulto está tentando transar. Ou transando. Ou fantasiando que transa. E desconfie dos que não estão: a falta de libido é indicativo de que algo na pessoa não vai bem.

Então, o quão hipócrita é chamar alguém de vagabunda, considerando que a palavra sempre sai da boca de seres transantes ou a fim de serem transantes? A hipocrisia é resultado daquela velha desigualdade. O Aurélio confirma: "Vagabundo. [Do lat. Tard. Vagabundu.] Adj. 1. Que leva uma vida errante; que vagueia; vagamundo, vadio, errante, nômade, andejo, mundeiro (...)" e por aí vai, sem nunca tocar na vida sexual do sujeito.

Em tempos de produtividade compulsiva, acho a ideia de vagar a esmo maravilhosa. Pena que esse viés nem sequer conste no verbete feminino, já que até o século 20 e, em alguns países, até hoje, viajar ou vagar sozinho pela rua é privilégio de homem. Às mulheres sempre restou o território do quarto, onde se desdobram dando prazer a si e ao outro para depois levar pedra feito a Geni. E como eles gostam de jogar essa pedra: galinha, vadia, quenga, rameira, biscate, periguete. Quanta coisa para traduzir o pavor e o fascínio que os homens têm pelo prazer feminino, essa perturbadora manifestação da liberdade de uma mulher.

Se no começo deste texto eu desejava que a palavra vagabunda estivesse entrando em desuso, já mudei de ideia. Vamos usá-la como o elogio que é. Vagabunda vem de vagar. Em um país em que quase metade das mulheres não tem orgasmo, temos mais é que vagar atrás de parceiros interessados em conhecer o nosso corpo, atrás de relacionamentos não calcificados no sofá do comodismo, atrás do tesão possível em todas as idades, atrás do gozo já tão escasso no dia a dia.

Não importa o gênero: somos todas e todos vagabundas à medida que vagamos atrás de satisfação. E quem não vaga, que vague, é o mínimo que podemos fazer com essa sorte lotérica de estar vivo. Sejamos todos vagabundas, vagabundíssimas, a Nação Unida das Vagabas. E, quando alguém lhe dirigir essa palavra, ainda diga: com todo prazer.

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