Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
Descrição de chapéu Todas medicina

A endoscopista e a escritora

Rumei para a clínica onde ela iria me conhecer mais intimamente do que nunca

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Quis a vida que fosse assim: ela a endoscopista, eu a escritora. Desconfiamos do talento dela desde o dia em que nasceu, 11 anos depois de mim, a família surpresa ao ver sua mãozinha saindo pela primeira vez de dentro do cueiro, um membro demasiado grande e ágil para um recém-nascido. De cara, alguém já disse: vai ser pianista, sem imaginar que, no futuro, a menina preferiria usar seu dom para tocar tubos e conexões.

Foi para ela que eu, a escritora, preparei meu tubo nos últimos dias, tendo agendado a colonoscopia, exame que se torna necessário depois de a vida ter nos calejado por tantos ânus —me perdoem o irresistível e cretino trocadilho retal. Não queria decepcionar a minha irmã mais nova, a quem, graças à sua maturidade, venho chamando de irmã mais velha. Portanto, me esforcei para impressionar a minha irmã 11 anos mais nova mais velha, caprichando no jejum, tomando os medicamentos e, paralelamente, deixando a minha alma na privada.

Sala de simulação realística de endoscopia, no curso realizado pelo Hospital Sírio-Libanês
Sala de simulação realística de endoscopia, no curso realizado pelo Hospital Sírio-Libanês - Jardiel Carvalho - 4.nov.2022/Folhapress

Chegada a hora, rumei para a clínica, onde ela iria me conhecer mais intimamente do que nunca. Guardei minhas vestes no armário, deitei na maca e fiquei esperando por ela e pela anestesista.

Enquanto olhava ao meu redor, lembrei de quando ganhei o meu primeiro computador e convidei-a para usar um pouco. Ela devia ter uns oito anos. Abri um documento e disse que ali ela podia escrever ou desenhar, criar personagens e histórias. Pediu que eu esperasse. Logo voltou com um livro: O corpo humano. Começou a copiar uma lista de músculos, enumerados por algarismos. Fiquei indignada: pra quê copiar o que já existe, e ainda ípsis líteris? E ela: que chatice essa tua mania de ficar sempre inventando coisa.

Na sala da clínica, lembrei como somos diferentes: ela gosta de tênis, eu acho que raquete só serve para matar mosquito. Ela faz cerâmica, eu quebro tudo o que pego na mão. Ela é uma esgrimista para assuntos da vida prática, eu a mulher que sempre perde a data de vencimento dos boletos. As nossas profissões as maiores provas de que, em comum, só temos o nariz grande.

Logo depois ela entrou na sala. Tomou a minha mão, perguntando se eu estava tranquila para fazer o procedimento. Como não estaria? Nas vezes em que me joguei e caí, ela estava sempre lá embaixo segurando a rede de proteção. Quando me ralava por aí, ela sempre aparecia com um Mertiolate líquido ou metafórico. Que viessem os opiáceos. Que viesse a câmera transmitindo ao vivo o espetáculo do meu intestino. Disse para ela que sim, podíamos ir em frente.

A anestesista me picou. Naquele delicioso torpor onde não reina a supremacia das ideias recorrentes, percebi que sempre estive enganada. Ainda que eu trabalhe num bunker escuro cercada de livros e ela sob aquela luz cirúrgica, ainda que eu seja de humanas e ela de científica, ainda que eu prefira criar e ela copiar, na verdade temos trabalhos muito parecidos: somos ambas fascinadas pelo ser humano, pelas suas entranhas e até pela sua decadência; ela usa uma cânula para entrar, vasculhar e investigar o que vai dentro de cada um, eu faço exatamente o mesmo usando as letras.

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