Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso

A revolução dos clubes de leitura

Talvez um dia, numa distopia distante, em vez de queimarem livros, fechem chats

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Este ano fui convidada para participar de um clube de leitura que discutiria o meu romance "Suíte Tóquio". Não era o primeiro nem seria o último convite desse tipo que eu receberia, mas a abordagem chamou a minha atenção. A pessoa que me dirigiu o convite avisou que o grupo era composto por mulheres de classe alta, bastante conservadoras. Claro que isso não era um problema, pelo contrário, me alegrava saber que o livro vinha ganhando um público diverso, mas fiquei intrigada para saber como aquelas leitoras receberiam questões centrais do romance: a exploração do trabalho doméstico, as fragilidades da monogamia, a bissexualidade e a ilusão de contentamento sustentada pelo êxito financeiro.

Alguns dias depois, eu entrava na casa onde acontecia o encontro, um ambiente luxuoso com cerca de quarenta mulheres dispostas em sofás e poltronas. Respondi algumas perguntas e, em seguida, a conversa foi aberta para elas pela mediadora.

Entre suspiros e estalos de dedos, essas mulheres reclamaram da participação tímida dos maridos nas questões domésticas e na criação dos filhos. Conversaram sobre bissexualidade e relações fora do casamento. E quase se engalfinharam falando de trabalho doméstico e exploração de classe, tendo visões divergentes.

Livros dispostos em prateleiras em uma livraria
Pexels por Pixabay

Alguns dizem que o maior feito de um livro é transformar o próprio escritor. Nesse sentido, o meu teve êxito: ali sentada me dei conta do quanto fui preconceituosa subestimando algumas daquelas mulheres. Ainda melhor do que isso foi relembrar o poder da literatura. Montada a partir de dramas subjetivos e, portanto, complexos demais para serem enquadrados em matrizes ideológicas, a narrativa de ficção consegue chegar onde outros tipos de textos não conseguem. Num mundo polarizado pela retroalimentação dos algoritmos, em que as pessoas só consomem perspectivas iguais as suas, a literatura surge, mais do que nunca, como água no deserto.

No entanto, o melhor daquele encontro foi o próprio encontro. Quando lancei o meu primeiro livro, há sete anos, clubes de leitura, como o Leia Mulheres, eram raros. Com as plataformas digitais facilitando a organização dos grupos, uma nova onda vem transformando esse meio.

De atividade solitária, a leitura — ou, ao menos, a elaboração em torno dela —, passou a ser coletiva. Um dos primeiros efeitos é numérico. De acordo com uma pesquisa de 2019, do Instituto Pró Livro, os brasileiros leem, em média, quatro míseros livros por ano. Os encontros, geralmente sugerindo a leitura de uma obra por mês, vem ajudando a levantar esse sarrafo.

As obras passaram a ser ponto de partida para discussões que, muitas vezes, não aconteceriam em outra circunstância. Onde as leitoras que citei poderiam falar de assuntos proibidos em um meio machista, que oprime algumas discussões dentro do próprio ambiente doméstico? E ainda tendo o personagem de ficção como aparato para enfrentar tabus sem se expor?

A necessidade de diálogo não se restringe a esse grupo. As pessoas, especialmente minorias, andam ávidas por mudanças e, nesse contexto, os clubes, formados por integrantes de diversos cantos, aglutinados pelo meio digital, proporcionam não só diversidade de pensamento como ferramentas para descobertas e trocas.

Outra coisa bacana é a curadoria. Com tantos títulos disponíveis no mercado, resultado da chegada de pequenas editoras e autopublicações, fica difícil fazer uma escolha e o clube faz esse papel, inclusive segmentando, como o Amora (romances de autoras mulheres), Escrevendo o Brasil (contemporâneos nacionais), Clube F. (títulos feministas), Leituras Extraordinárias (obras que causam estranhamento), Leituras Decoloniais e tantos outros.

Sem falar nos clubes de famosos, que arrastam multidões, como o de Reese Whiterspoon, Manuela D’Ávila, Gabriela Prioli e Pedro Pacífico, com 74% de seguidores mulheres. Acaso? Certamente não, já que elas são mais da metade dos leitores no Brasil. Contingente que, nos clubes, parece ser ainda maior.

Não gosto da ideia utilitarista de literatura, mas é inegável que atrás das portas e das câmeras de Zoom vêm acontecendo uma discreta revolução. Talvez um dia, numa distopia distante, em vez de queimarem livros, fechem chats. Até lá as páginas já vão ter virado muitas cabeças.

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