Glenn Greenwald

Jornalista, advogado constitucionalista e fundador do The Intercept

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Visão de Lula sobre Ucrânia tem mais respaldo na direita que na esquerda dos EUA

Democratas são hoje defensores fanáticos de postura belicista, enquanto republicanos se tornam críticos de CIA e FBI

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Desde que foi eleito em 2022, Lula (PT) vive uma espécie de lua-de-mel com setores do establishment ocidental. Essa popularidade resulta em grande parte da vitória sobre Jair Bolsonaro (PL), a quem as elites norte-americanas e europeias têm ojeriza. Essa é uma dinâmica difícil de compreender com as lentes da Guerra Fria.

Esse realinhamento ocorre porque, nas últimas décadas, essas elites se viram ameaçadas não pela esquerda, mas pela direita antiestablishment: Brexit, Trump, Orbán, movimentos contra a União Europeia, Bolsonaro. É nesse contexto que o Estado de segurança dos EUA, liderado pela CIA e pelo FBI, muda seu foco histórico (esquerda radical, movimento negro e sindicatos) para a direita populista.

Lula durante visita oficial à Casa Branca, em Washington - Caio Guatelli - 10.fev.23/Folhapres

É claro que a CIA e o FBI continuarão sua campanha contra movimentos de esquerda e populações muçulmanas, mas grupos de direita populista, supremacistas brancos e antigoverno são o alvo principal.

Assim que emergiu como um candidato presidencial viável, a CIA viu Trump e seu movimento como uma grave ameaça. O governo Trump foi inundado por escândalos sem fundamento originados na CIA, culminando na conspiração enlouquecida e amplamente difundida de que Trump era um agente do Kremlin, comprometido por chantagem sexual, e que a sua campanha havia "conspirado" com Moscou para hackear os emails da campanha de Hillary Clinton.

A oposição da CIA foi em razão das críticas de Trump à campanha contra Assad na Síria, à Guerra do Iraque e ao bombardeio na Líbia e do questionamento —sacrilégio em Washington— da relevância da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). O que mais enfureceu a CIA foi a zombaria pública de todas as mentiras, os erros e os crimes da agência por Trump.

Semanas antes da posse do republicano, em 2017, o então líder democrata no Senado, Chuck Schumer, disse na TV: "Quem conhece Washington sabe que Trump está fazendo uma burrada. Você não deve ir contra a CIA. Eles têm mil formas de te destruir". Ele estava certo: o governo Trump esteve sob bombardeio constante das agências de inteligência dos EUA.

O triunfo sobre Bolsonaro fez as elites americanas esquecerem do que foram os anos de governo Lula: o Brasil não se submeteu aos ditames dos EUA, adotando uma postura não alinhada. Nas últimas semanas, Lula ofereceu lembretes disso, seja em sua recusa em embarcar num conflito com um parceiro comercial como a Rússia ou no imbróglio envolvendo os navios iranianos.

Lula também teceu críticas —corretas, a meu ver— à conduta dos EUA e da Otan de alimentar o conflito com a Rússia. Nos EUA, essa posição encontra respaldo não na esquerda progressista —a jovem deputada autodenominada socialista AOC (Alexandria Ocasio-Cortez) e o senador Bernie Sanders, por exemplo, são defensores fanáticos dessa postura belicista—, mas na ala populista do Partido Republicano.

Em maio passado, Biden solicitou ao congresso mais US$ 33 bilhões para a Guerra da Ucrânia (ou seja, para a indústria armamentista e para os cofres da CIA). Todos os democratas, incluindo Sanders e AOC, votaram a favor. Os únicos votos contrários vieram de 68 parlamentares republicanos que defendem, como Lula, que o governo dos EUA deveria investir em seus próprios cidadãos e não alimentar uma guerra do outro lado do mundo.

Trump e Lula concordam ao criticar Biden por não buscar uma solução diplomática. Por isso, a oposição do público americano à Guerra da Ucrânia, como o jornal The New York Times informou, vem aumentando, mas quase exclusivamente entre conservadores. O fato de Trump ser o primeiro presidente dos EUA em décadas a não envolver os EUA em uma nova guerra —e um fato indiscutível— é o que ele costuma ouvir como sua realização de maior orgulho.

Também se vê esse realinhamento na visão das agências de inteligência como a CIA e o FBI. Pesquisas mostram que os democratas cada vez mais as admiram, e os republicanos cada vez mais as rejeitam. Por isso, um dos primeiros passos da nova maioria republicana foi criar o primeiro comitê investigativo em décadas com foco nas agências de inteligência.

Em 2021, quando eclodiram protestos em Cuba, o establishment dos dois partidos se uniu em apoio aos protestos. A única dissidência veio do apresentador conservador Tucker Carlson, o mais popular da TV dos EUA, que questionava o que dava direito às elites americanas de interferir em Cuba. É também o programa de Tucker o único lugar em que se ouve oposição à campanha dos EUA contra o governo venezuelano de Nicolás Maduro.

Os brasileiros gostam de anunciar que seu país "não é para amadores" e que as realidades políticas do Brasil são complexas e dinâmicas. Isso certamente é verdade, mas se aplica também aos EUA.

Muitas das suposições sobre o sistema político nos Estados Unidos são distorcidas por crenças de décadas atrás. O fato de a CIA e o MI6 preferirem Lula a Bolsonaro ou de a mensagem antiguerra de Lula ressoar mais entre os conservadores que os progressistas nos EUA ilustra isso. Resta ver se o establishment ocidental continuará gostando de Lula se ele repetir a postura autônoma do passado.

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