Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

Tudo na vida já foi impossível até ficar facílimo

Minha filha encara o corpo dela como quem se depara com um computador gigante

Minha filha tem só três meses de idade e tudo que ela precisa, no mundo, é da girafa. A girafa é gostosa de pôr na boca. E faz um barulho engraçado. E a girafa tá bem na sua frente. Não deve ser difícil de pegar, ela pensa.

Talvez baste abrir a boca que a girafa vem sozinha. Funciona com o peito da mamãe, que aterrissa sozinho na boca. Cadê? Vem, girafa. Tô pronta. Nada. Talvez tenha que gritar. Aaaah. Iiiiiih. Buuuuu. Não. Girafa estúpida.

Deve ter algum comando, alguma forma de levantar a mão, fechar os dedos sobre o pescoço da girafa e trazer a borracha macia até a boca. Mas qual será o comando? São tantos.

Ilustração
Catarina Bessel/Folhapress

Ela então olha pro seu próprio corpo como alguém que se depara com um computador gigantesco, com 300 mil botões em japonês, e tem uma ideia brilhante: apertar os botões aleatoriamente. Algum deles deve ser responsável pela mão direita. Esse, não. Esse é o pé. Não. Esse é o outro pé. Ih. Olha que legal esse pé.

Consigo levantar e abaixar. Bacana. Tenho que lembrar como fiz isso, um dia posso precisar. Mas agora não serve pra nada. O que preciso é da mão. Concentra.

Não. Essa é a sobrancelha. Não sei nem pra que é que serve isso. Ah, as pessoas tão rindo de mim. Deve servir pra isso. Nossa. Parece mágica. Mexendo a minha cara consigo mexer a cara dos outros. Mas foca a mão direita, é dela que você precisa.

Ela então olha pra mão direita como a Uma Thurman olha pro mindinho do pé. Faz tanta força que solta um pum. Rio, porque não resisto a uma piada de pum. A filha, mais sofisticada, não vê graça nenhuma. Ao contrário. Pela primeira vez no dia, chora.

Será que estou sendo sádico? Levo minha mão até a girafa pra interromper o sofrimento. Não. Preciso deixar que ela aprenda sozinha. Tiro a mão da girafa. Ponho de volta. Ela observa a minha mão subindo e descendo, e como que inspirada por ela, levanta a própria mão, e sorri orgulhosa. 

E não para por aí. Leva a mão até o pescoço da girafa. Muito concentrada, ergue a girafa nos ares e, como se a própria vida dependesse disso, mira a girafa em sua boca, mas atira o animal com toda força pro outro lado da sala. Enquanto isso, sua boca aberta espera, em vão, a chegada do bicho.

Pego a girafa no chão e, sem esterilizar (já passamos dessa fase), ponho o bicho em sua boca. Ela sorri, achando que eu sou uma espécie de deus, ou de mãe, o que dá um pouco no mesmo.

Calma. Não chora. Um dia tudo vai ser mais fácil, digo, mentindo pra ela e pra mim mesmo.

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