Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

A mula que só queria ver o circo pegar fogo

Criticar a queimada seria, além de incoerência, ingratidão

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1. ​O Brasil está em chamas, como a Califórnia em 2018, ou Portugal em 2017. Até nisso estamos atrasados. As diferenças, no entanto, são muitas —mas a principal é que lá foi acidente. Aqui é um projeto de governo. O incêndio não é sequer um efeito colateral do progresso, mas a ideia de progresso em si. A queimada aqui cumpre uma promessa de campanha —talvez a única: a de reduzir o país a pó. 

2. Meu pai fazia castelos de areia. Demorava uma tarde inteira. Pensava em cada detalhe. As janelas, as escadarias, o fosso, as pontes.  As crianças ajudavam no que podiam, orgulhosos daquele colosso que estava se erguendo. Sempre terminava da mesma maneira: um garoto surgia correndo e destruía numa fração de segundos aquilo que a gente tinha demorado uma tarde para fazer. Meu pai fingia achar normal. A água ia levar de qualquer jeito. Nós, as crianças, não conseguíamos esconder a decepção com o gênero humano. 

3. “Queimar era um prazer”, dizia Montag, protagonista do livro "Fahrenheit 451", mas podia ser nosso presidente. Toda a campanha do sujeito girava em torno da ideia de destruição: varrer a esquerda, fuzilar a petralhada, acabar com tudo isso que tá aí. Impossível se espantar com a implantação do seu projeto principal de governo. O próprio presidente não fingiu surpresa. Criticar a queimada seria, além de incoerência, ingratidão. Um dos fazendeiros que teve a brilhante ideia do “dia do fogo” disse que o objetivo era mostrar pro presidente que eles queriam trabalhar. Rapaz, quer que o presidente preste atenção em você? Faz xixi na cara do seu colega e posta. Não precisa fuder com a vida de todo o mundo em volta para passar um recado para esse imbecil.

4. Outra memória: um primo mais velho, me ensinando a não mexer com a fogueira: “Quem brinca com fogo faz xixi na cama”. Obedeci, e pensei durante um tempo que fosse uma evidência científica. Talvez fosse preciso criar um novo mito, já que o presidente não teria problema em fazer xixi na cama. “Quem brinca com fogo, o filho vai preso e o dólar vai a 5.”

5. Trump está construindo um muro. É uma ideia estúpida, mas ao menos está erguendo algo. Bolsonaro não tem nenhum projeto que não seja ver o circo pegar fogo. Esse talvez seja o traço mais característico do bolsonarismo: cancelaram o futuro. Witzel não tem nenhuma política pública que não seja o genocídio. Antigamente faziam as UPPs, que eram um pretexto caro para matar gente pobre. Cortaram o pretexto. Puta economia pro Estado. Agora vai direto pro mata-mata. A morte deixou de ser a sobremesa. Virou prato principal. 

6. Achille Mbembe fala em necropolítica quando o Estado cria “mundos de morte” para controlar a população, transformando-a em mortos-vivos. Para Mbembe, o caso palestino é “a forma mais bem sucedida de necropoder”. É também o modelo de bem estar social do nosso presidente piromaníaco. 

Ilustração
Catarina Bessel/Folhapress

7. Festa junina da minha escola. “Pula a fogueira, iôiô, pula fogueira, iaiá”, todas as crianças corriam em volta do fogo, inclusive eu, “cuidado para não se queimar”. Meu amigo tinha quatro anos e estava de chapéu de palha, caiu de cara na fogueira e quando levantou seu rosto estava em chamas. Fomos visitar o amigo no hospital e não dava para ver seu rosto, todo enfaixado. Me botaram em outra escola.

8. Por aqui, há quem ache divertido à beça tudo isso. “Que comédia! O cara tá cagando pra floresta! O outro tá cagando pros direitos humanos! Cada figura! Vou comprar pipoca e assistir o fogaréu.” Amigo, me diz o que você ama. Fala um lugar. Não tem porra de Orlando nem Miami nem Disney nem Beto Carrero nem Campos de Jordão sem Amazônia. Fala uma pessoa: não tem sua filha, não tem seu neto, não tem você. Sem água, não tem nem sua bebida que pisca. Sua reforma da previdência não faz sentido nenhum sem ar respirável. Acorda, cacete. 

9. No dia seguinte a gente voltava à praia e começava tudo de novo. Sabendo que alguém iria botar abaixo no fim do dia. A metáfora é péssima. Uma floresta não se ergue do dia para a noite. Um planeta não se ergue do dia para a noite. Com o perdão do termo: fudeu. 

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