Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

Mesmo quando a gente sair da pandemia, vai demorar pra ela sair da gente

Saudade da aglomeração deu lugar a uma aflição da proximidade, a uma preguiça de gente nova

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Cada um tem a sua própria fantasia pro dia em que acabar a pandemia. Há quem preveja o maior Carnaval da história, com ampla troca pública de fluidos mais diversos.

Por aqui, sonho com esse dia em que quarentenados tomarão as ruas, pálidos, sedentos de sol, ávidos de abraço. Anêmicos desembarcarão aos milhares de seus prédios, famélicos como os primeiros portugueses a descer por aqui e, numa grande festa junina fora de época, queimarão suas máscaras numa imensa fogueira embebida de litros de álcool em gel.

Desconhecidos então se roçarão, esfregarão, lamberão, morderão, dividindo a mesma lata babada de cerveja. Ex-tímidos descerão até o chão, ex-abstêmios dividirão a mesma catuaba, ex-inimigos de morte dançarão a mesma ciranda, “minha jangada vai sair pro mar”, cantarão, “vou trabalhar, meu bem querer”, e o céu então se riscará por mil perdigotos, como vagalumes anunciando a aurora do novo dia.

Doce ficção. Tudo indica que a pandemia não vai acabar num dia preciso, ou pelo menos não pra todo mundo. Pra alguns, inclusive, já acabou. Bares já estão cheios de engenheiros civis formados bebendo como se não houvesse amanhã —até porque se você parar pra pensar, na verdade não há, há, há. A vacina pode até sair num dia preciso —mas vai chegar num dia diferente pra cada um de nós. E pior: mesmo quando todo o mundo estiver vacinado, será que a gente vai estar a fim de um Carnaval?

Colagem de uma arca com Gregorio Duvivier na entrada e várias pessoas comemorando em cima como se estivessem no Carnaval
Publicada nesta quarta-feira, 5 de agosto de 2020 - Catarina Bessel/Folhapress

Encontrei dois amigos nesta semana. Tudo à distância de três metros, sem compartilhar copos, nem pratos, nem seringas. Não sei se todos sentiram a mesma coisa, mas a conversa já não fluía como antes. Conversávamos com a respiração ofegante, as juntas doloridas de um jogador de futebol aposentado. As articulações do papo tinham sido moídas pela artrose. A piada já não vinha na hora certa, o volume de voz descalibrou.

Por aqui, a saudade da aglomeração deu lugar a uma aflição da proximidade, a uma preguiça de gente nova, a um desábito do convívio.

Já já vamos voltar a receber mensagens com o famigerado: “Qual vai ser?”. E vamos ter que voltar a inventar programas, só porque afinal é sábado, e conhecer gente nova, e frequentar amigos secretos e chás de bebê e casamentos de primo e batizados e bar-mitzvás, e voltar a inventar assunto com gente de outro planeta, só porque estão no mesmo ambiente. Mesmo quando a gente sair da pandemia, vai demorar pra pandemia sair da gente.

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