Inútil procurar algo de bom numa pandemia. “Os animais retomaram as ruas!” diz o otimista, “tem pavões passeando por Madri e javalis em Barcelona” —sim, que bom pra eles. Ótima notícia pra quem for javali.
Não cheguei a esse grau de evolução de ficar feliz por ele. Imagina um dinossauro avistando o meteoro, e você tentando reconfortá-lo: “O planeta vai se reinventar! Vai ser ótimo pros mamíferos”.
Estou cada vez mais convencido que a extinção está próxima e me sinto um brontossauro —lento, sedentário, engordando rumo à extinção. E em nada me conforta a ideia de que o meteoro fará muito bem aos roedores, que evoluirão pra bichos maiores que hão de criar museus com nossas ossadas.
Não consigo trabalhar. Escrever não faz sentido, porque só sei falar sobre um mundo que já não existe, o mundo pré-pandemia, pra um mundo que ainda não existe, pós-pandemia. Não consigo ler porque só penso no colapso da saúde, e nos familiares doentes, e nos mortos se acumulando. Pra piorar, não paro de tossir, e já não sei se é Covid-19 ou se é excesso de notícias sobre Covid-19. Passo os dias investigando os riscos que posso ter corrido, e calculando probabilidades “aquele dia que eu fui ao supermercado, meu cotovelo relou na prateleira, chegando em casa não passei desinfetante no tênis”.
Pra piorar, tenho me tornado um marido detestável, daqueles que passam o dia enumerando em voz alta tudo o que fez, para a mulher ouvir: “Já passei o aspirador, já arrumei a cama, já limpei a privada...” Confesso que espero ela acordar pra lavar a louça, pra que ela veja que estou lavando a louça, e ao final exclamo: “que bom que eu lavei a louça”. (É como diz o provérbio budista: se uma árvore cai na floresta e ninguém escuta, ela faz barulho? Da mesma forma: se eu lavo a louça e ninguém percebe, eu lavei a louça?)
Os dias parecem todos iguais —a não ser aquela sexta-feira. Quando Moro jogou merda no ventilador, achei que não ia sobrar pedra sobre o gado. Nada. Bolsonaro jogou umas bombas de fumaça (“meu filho pega geral”, “desliguei o aquecedor da piscina”, “a avó da minha mulher é traficante”) e pronto. O gado segue em direção ao abismo, levando o país junto. Nada mais dá em nada.
A única coisa boa disso tudo: minha filha está fazendo cocô no penico. E toda vez grita de orgulho, e aponta pro cocô, como se fosse um troféu. Como tirei foto do primeiro cocô, toda vez ela insiste que eu documente: “tira foto, papai”. Já tenho um pequeno álbum de adoráveis bolinhas de cocô. Já é alguma coisa.
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