Guilherme Boulos

Professor, militante do MTST e do PSOL. Foi candidato à Presidência da República e à Prefeitura de São Paulo.

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Guilherme Boulos

Radicalismo da Indiferença

O 'radicalismo' que precisamos combater é o que divide a sociedade entre gente e subgente

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O velho samba de Adoniran Barbosa cantava assim: "Quando o oficial de Justiça chegou lá na favela e, contra seu desejo, entregou pra seu Narciso um aviso, com uma ordem de despejo".

Seu Willian não teve sequer a sorte de Seu Narciso em receber o aviso do oficial de Justiça.
Morava havia tempos debaixo de um viaduto no Tatuapé, quando na última semana a Prefeitura de São Paulo instalou pedras no local, com a única finalidade de expulsar os moradores. "Agora vou ter que me virar pra encontrar um lugar que pelo menos não molhe com a chuva", desabafou.

Depois da repercussão, a administração de Bruno Covas alegou que não tinha conhecimento do fato e que iria desfazer a obra. Mas o episódio do Tatuapé está longe de ser um caso isolado; ao contrário, é expressão de uma arquitetura higienista estabelecida em São Paulo e que se espalhou pelo Brasil.
Em 2005, o então prefeito José Serra, também do PSDB, inventou a "rampa antimendigo", instalada na região da avenida Paulista. De lá para cá, inúmeras rampas e obras de pedra foram feitas na cidade.

A perversidade desenvolveu suas formas criativas. Em 2007, na reforma da praça da República, foi a vez dos "bancos antimendigo", instalados com divisórias de ferro para impedir que os sem-teto se deitassem. Durante a noite, os bancos ficam vazios, e as pessoas dormem no chão. Outra obra da segregação paulistana foram as "lixeiras anticatador", desenvolvidas por condomínios de bairros centrais. Adaptaram lixeiras para trancá-las com cadeado e impedir que os trabalhadores da reciclagem façam seu trabalho, afastando-os, eles e suas carroças, dali.

Prefeitura instala pedras sob viadutos que passam sobre a av. Salim Farah Maluf - Zanone Fraissat/Folhapress

A arquitetura da segregação dá concretude a uma das piores expressões da alma humana: a indiferença. Quando perdemos a capacidade de sentir a dor do outro, nos tornamos menos humanos. Quando vemos alguém jogado numa calçada e não conseguimos enxergar que poderia ser nosso irmão, quando vemos uma criança pedindo comida no semáforo e não enxergamos nossos filhos, a indiferença venceu. Está aberto o caminho para a naturalização do horror, numa sociedade em que o sofrimento é apenas uma parte desagradável da paisagem. Melhor não ver. Bota pedra que resolve.

É simbólico que os mesmos que acham natural tirar o abrigo de quem já não tem nada considerem radical demais garantir um teto a essas pessoas. Perdi a conta de quantas vezes ouvi gritos indignados contra quem acabou debaixo da lona por não ter um lar. E silêncio diante das pedras e rampas contra a população de rua.

O "radicalismo" que precisamos combater é o que divide a sociedade entre gente e subgente. O radicalismo da indiferença.

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