Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Dominguinhos, um verdadeiro pau de arara na MPB

Morto há dez anos, Dominguinhos foi um sobrevivente da miséria brasileira

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Neste dia 12 de fevereiro, o grande sanfoneiro Dominguinhos completaria 82 anos. Em 2023 faz dez anos que ele nos deixou, depois de uma longa luta contra o câncer de pulmão.

Uma das canções mais bonitas de Dominguinhos, letrada por Gilberto Gil, é "Lamento Sertanejo", que relata o desconforto do migrante sertanejo na cidade grande. Sempre aberto a novidades citadinas, Dominguinhos nunca se encaixou no eu lírico tristonho pensado pelo letrista.

Gilberto Gil, filho de pai médico, migrou pro Sudeste de avião, depois de formado em administração, e não viveu o drama dos caminhões apinhados de gente. De forma que a letra de "Lamento Sertanejo" carrega grande força lírica, não necessariamente vivida. A poesia nos permite viver coisas que nem o poeta necessariamente viveu, mas pelas quais foi tocado. E o drama da migração nordestina era um tema candente em 1976, quando Gil letrou a canção instrumental do sanfoneiro.

O migrante pau de arara foi muito cantado na canção brasileira. Mais cantado do que vivido de verdade. Dominguinhos foi o único grande artista nordestino da MPB que veio para o Sudeste num pau de arara. De Alceu Valença a Tom Zé, praticamente todos os artistas associados ao rótulo MPB migraram para o Sudeste de forma mais confortável, alguns até de avião.

Isso aconteceu pois a MPB era, nos anos 1960 e 1970, uma música feita sobretudo por estudantes universitários das classes médias brasileiras, e mesmo os nordestinos que dela faziam parte tinham essa origem. Poderia ser que não fossem universitários de fato, como é o caso de Gal Costa, que nunca cursou o ensino superior. Mas eram oriundos de classes com capital econômico ou cultural que conseguiam de alguma forma garantir conforto na hora de migrar e se adaptar à nova cidade sudestina.

A cantora Elba Ramalho se mudou para o Rio de Janeiro para tentar a carreira artística em 1974 de ônibus, junto com o grupo pernambucano Quinteto Violado. Caetano Veloso já havia visitado duas vezes o Rio de Janeiro na infância e adolescência, sempre de avião. Ele foi morar no Sudeste e iniciar a carreira em 1965, quando acompanhou sua irmã Bethânia em início de carreira. Novamente de avião.

É importante lembrar que viajar de avião na época não era para qualquer um. Voar era caro e reservado às elites. Num país miserável, um camponês pobre que passou fome na infância, como Dominguinhos, nunca sequer cogitou migrar de outra forma. Foram 11 dias comendo carne seca com farinha e água num caminhão que quebrava ao longo das estradas ainda pouco pavimentadas dos interiores brasileiros.

Em 1949 foi inaugurada a Rio-Bahia, que ligava Feira de Santana até a capital carioca, rodovia usada por Dominguinhos e sua família. Nove anos após sua inauguração, apenas 230 quilômetros de seus 1.718 quilômetros totais estavam pavimentados. O sanfoneiro chegou ao Rio em 1954, aos 13 anos de idade, e foi morar em Nilópolis, subúrbio da capital carioca.

A migração do sanfoneiro foi bem diferente dos universitários da MPB. Convidado por Caetano, Tom Zé voou num avião Caravelle da Panair para o Rio de Janeiro em 1967. Apesar de interiorano de Irará, na Bahia, Tom Zé era universitário, formado em música na Universidade Federal da Bahia.

Belchior era estudante de medicina e, algo incomum na época, possuía até carro próprio, bancado pela família abastada de Sobral. Voou para o Rio e nunca viveu o drama do pau de arara. Por sua vez, Geraldo Azevedo, estudante de arquitetura em Recife, andou de avião pela primeira vez quando migrou para o Rio de Janeiro na segunda metade dos anos 1960 a convite da cantora Eliana Pittman. Já Alceu Valença era formado em direito e ganhava a vida de forma relativamente confortável. Já tinha até morado nos Estados Unidos quando foi tentar a carreira artística no Sudeste.

O cantor de protesto Geraldo Vandré nasceu em João Pessoa e migrou para o Rio de Janeiro ainda criança, em 1952. No Rio formou-se advogado. Filho de médico nunca teve a experiência direta da travessia em um pau de arara.

Mesmo entre forrozeiros, os principais nomes não migraram de pau de arara. Luiz Gonzaga, por exemplo, não viveu o drama do que tantas vezes cantou. Quando ele migrou para o Sudeste, era membro do Exército Brasileiro, de forma que nunca viveu a dramática condição dos migrantes nordestinos que tanto representava. Jackson do Pandeiro migrou para o Rio em 1956. Como já era famoso no Recife, com discos gravados e muitas apresentações nas rádios, só não comprou uma passagem de avião pois tinha medo de voar. Foi de navio morar no "Sul Maravilha".

O drama do pau de arara foi mais cantado do que vivido de fato na MPB.

Dominguinhos foi um sobrevivente da miséria brasileira, um migrante pau de arara de fato.

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