Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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O sertão foi inventado na música brasileira por Luiz Gonzaga com 'Baião'

Assim como 'Chico Mineiro', de Tonico & Tinoco, canção foi lançada em 1946, ano importante para o gênero caipira

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Há anos que são fundamentais na história da música brasileira. "Atraente", composição de estreia de Chiquinha Gonzaga, foi um estrondoso sucesso em 1877. A polca abrasileirada de Chiquinha foi fundamental para a consolidação do que viria a ser o choro no Brasil.

Quarenta anos depois, 1917 foi o ano da gravação do primeiro samba, "Pelo Telefone", de Donga e Mauro de Almeida, marco do gênero que se tornaria "nacional" em poucos anos. Foi em 1958 que João Gilberto gravou "Chega de Saudade", de Tom Jobim e Newton Mendonça, dando início à bossa nova, marco identitário de uma brasilidade cosmopolita. O ano de 1965 marcou o surgimento tanto da Jovem Guarda quando da MPB, vistos na época como polos opostos de nossa música.

Cantor e compositor Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e, ao fundo, o acordeonista Dominguinhos, em 1977 - Divulgação/TV Cultura

Para o rock no Brasil, 1982 foi fundamental, especialmente a partir do sucesso da Blitz naquele ano, que alavancou uma nova geração de roqueiros. Em 2012 a música sertaneja conseguiu um espantoso sucesso internacional, "Ai se Eu te Pego", cantada por Michel Teló, consolidando a hegemonia popular-massiva do gênero no país.

Se todos esses anos são com alguma frequência lembrados por nossos historiadores da música, o ano de 1946 quase nunca é citado como fundamental. Uma pena, pois foi neste ano que duas canções reinventaram os sertões brasileiros.

Uma delas é a canção "Baião", composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: "Eu vou mostrar pra vocês/ Como se dança o baião/ E quem quiser aprender/ É favor prestar atenção…". "Baião" é uma metacanção, ou seja, faz parte daquelas músicas que remetem ao próprio universo da canção. Ela antecede e cria a própria moda do baião dos anos 1940 e 1950.

Gonzagão já gravava na RCA desde 1941. Como instrumentista tocava mazurcas, valsas, polcas e choros em sua sanfona. Nada de baiões, xotes e congêneres. A partir de meados da década, ele começou a traduzir para o mundo da rádio AM da época o que ouvira na infância e adolescência no interior pernambucano.

Gonzaga ambicionava tornar-se também cantor, o que não agradava muito a direção da RCA. Esta é uma das razões de "Baião" ter sido gravada pelo grupo vocal Quatro Ases e Um Coringa no ano-chave de 1946, e não pelo próprio compositor. O reconhecimento dos autores e o sucesso do gênero musical forjado pela canção fez Gonzaga se tornar o rei do baião alguns anos mais tarde.

Por sua vez, Tonico & Tinoco já gravavam desde 1945 na Continental, sem grande repercussão. Em 1946 eles lançaram "Chico Mineiro", composição de Tonico e Francisco Ribeiro, que os colocou no primeiro escalão da música caipira: "Fizemos a última viagem/ Foi lá pro sertão de Goiás/ Fui eu e o Chico Mineiro/ Também foi o capataz...". A canção conta a saga do personagem-título, que foi a Ouro Fino comprar bois e, no meio de uma festa, foi baleado. A revelação vem no final da canção, na qual o narrador descobre ser irmão da vítima.

Antes de "Chico Mineiro", artistas caipiras imitavam a dupla Raul Torres & Florêncio. Após o sucesso da canção, Tonico & Tinoco se tornaram a principal referência do meio caipira. Participaram de diversos filmes, apresentaram programas de rádio, gravaram discos, apareceram nas revistas voltadas ao público do interior, enfim, adentraram a indústria cultural do seu tempo.

"Baião" e "Chico Mineiro" foram importantes pois catalisaram a invenção de nossos sertões musicais através da indústria cultural. O caso de Gonzaga foi mais radical, pois o pernambucano foi o responsável pelas primeiras gravações do baião. Nesse sentido, ele foi o inventor musical do Nordeste em disco, trazendo atrás de si uma infinidade de artistas que se vincularam à tradição do forró e seus diversos subgêneros, xote, xaxado, baião, coco, forró, toada e arrasta-pé.

Tonico & Tinoco conseguiram repercussão em um gênero, a música caipira, que já vinha sendo gravada desde 1929. Mas atingiram um patamar de sucesso que ninguém antes havia obtido. Nesse sentido, ajudaram a construir um sertão cuja trilha sonora eram as toadas, os cateretês, as modas de viola, quadrilhas e outros subgêneros da cultura caipira.

Veiculados pela indústria cultural do seu tempo, o rádio e as gravadoras, Gonzaga e Tonico & Tinoco ajudaram a padronizar as diferentes vertentes musicais que existiam em suas regiões. Suas influências foram decisivas para normalizar e padronizar as produções locais.

No caso de Gonzaga, isso é ainda mais perceptível. Foi ele o inventor do trio sanfona-triângulo-zabumba. Antes dele não havia essa formação. Em algumas regiões do norte —como era então chamado o Nordeste—, era comum que instrumentos como o pandeiro e o melê —um arco de madeira com uma câmara de pneu fazendo papel de tambor— fossem os condutores percussivos em vários forrós. Outras microrregiões nordestinas tocavam de outros jeitos. Gonzaga padronizou tudo isso ao introduzir o par zabumba e triângulo e abandonar a sanfona de oito baixos pelo acordeão de 120 baixos. Ao ser vitorioso através da indústria cultural, Gonzaga forjou um padrão de identidade para a música sertaneja que não havia antes dele.

Ao mesmo tempo que padronizou, a indústria cultural tornou sons regionais distinguíveis para o ouvinte médio. Luiz Gonzaga e Tonico & Tinoco fatiaram nossa audição acerca do sertão musical nacional. Antes, tudo era música sertaneja, música dos interiores, tipo de canção frequentemente ouvida como menor nos centros urbanos do país. Depois deles, o sertão foi fatiado e padronizado, tornando-se claramente reconhecível e distinguível. Depois de "Baião" e "Chico Mineiro" ninguém mais confundia os sertões.

A indústria cultural dos anos 1940 foi uma faca de dois gumes —ao mesmo tempo que padronizou a música dos interiores, ajudou a forjar distinções e identidades macrorregionais. Por tudo isso, 1946 foi um ano-chave. Daqueles que nos definem e ajudam a entender quem somos. Daqueles que explicam uma nação.

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