Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso

O Carnaval e a música sertaneja

Natural a música mais popular tocar na festa mais popular do país

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No domingo passado, 12 de fevereiro, fui ao bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, que na capital paulista desceu a rua da Consolação à tarde. Os vários trios elétricos davam um ar de carnaval baiano. O Olodum tocava animadamente. Um dos destaques foi a prometida homenagem à cantora Gal Costa, morta em novembro passado. A atriz Sophie Charlotte, que interpretou a artista no filme ainda inédito "Gal Fatal", e as cantoras Marina Sena, Tulipa Ruiz e Céu cantaram canções do repertório da baiana, como "Festa do Interior", "Divino Maravilhoso" e "Baby".

Tulipa Ruiz no desfile do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta - Greg Salibian - 12.fev.23/Folhapress

À tarde, quando o bloco ainda se encontrava no meio de seu trajeto, caiu uma chuva daquelas grossas e intermináveis. A música ao vivo parou e começaram os playbacks. Foi quando algo insólito aconteceu. Ouviu-se a voz da sertaneja Marília Mendonça e a multidão cantou a plenos pulmões hits da cantora —já morta—, como "Eu Sei de Cor" e "Infiel", mesmo encharcada pela chuva. Foi o momento de maior excitação dos foliões, especialmente dos mais jovens.

Até pouco tempo atrás, Carnaval era sinônimo de férias para os artistas do sertão. Quase todos os artistas sertanejos sossegavam nesta época do ano, a única em que conseguiam parar para descansar. Não havia apelo ao som sertanejo no Carnaval. Mas há algum tempo as coisas vêm mudando.

No Carnaval de 2010, na orla do rico bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, um bloco passou arrastando uma multidão de 15 mil pessoas. Era o "Chora Me Liga", com a dupla Rick & Ricardo, que cantava sucessos para um público animado. Em 2011, o número de foliões que acompanharam a segunda edição quase triplicou, passando de 40 mil pessoas. Naquele mesmo ano criou-se outro bloco ainda maior. Intitulado "E Daí?", referência ao sucesso de Guilherme & Santiago, o bloco desfilou pelas pistas do Aterro do Flamengo, onde pôde melhor acomodar o imenso número de passistas do sertão.

Em 2019 e 2020 houve outro desses momentos históricos. O bloco chamado "Bem Sertanejo", do cantor Michel Teló, trafegou pelo parque Ibirapuera arrastando multidões. Em ambos os anos o bloco caminhou pela avenida Pedro Álvares Cabral até o Monumento às Bandeiras, icônica e majestosa escultura de granito de Brecheret em homenagem aos bandeirantes, fato bastante simbólico para os artistas sertanejos. Depois da pausa devido à quarentena, o bloco de Michel Teló voltará neste ano no dia 19, em pleno domingo de Carnaval, na avenida Faria Lima.

Público participa do carnaval do bloco Bem Sertanejo, no Ibirapuera, em São Paulo, em 2019 - Thiago Duran - 3.mar.19/AgNews

Os sertanejos parecem tensionar algumas metamorfoses na festa mais popular do país, para horror dos puristas. Mas não é a primeira vez que mudanças acontecem no Carnaval.

Desde o tradicional entrudo colonial, o Carnaval já se transformou várias vezes ao longo dos séculos. O entrudo da época da Colônia e do Império era um antigo folguedo luso-brasileiro realizado nos três dias que antecedem a entrada da Quaresma. Os foliões se divertiam arremessando baldes de água, limões de cheiro, ovos, tangerinas, pastelões, luvas cheias de areia, golpeavam-se com vassouras e colheres de pau e se sujavam com farinha, polvilho e gesso. Reprimido no século 19, veio dar lugar ao Carnaval no século 20.

O Carnaval só se tornou "a" festa nacional por excelência quando o Brasil mudou. Foi nas décadas de 1920 e 1930, a partir de transformações estéticas, políticas e econômicas gestadas a longo prazo, que o Carnaval pôde ser de fato institucionalizado na cultura brasileira.

O Carnaval carioca passou a ser visto àquela época como "o" Carnaval nacional. Era a partir do Rio de Janeiro que se irradiavam os novos sentidos culturais da nação de então, a despeito das particularidades locais e regionais. O Carnaval baiano, por exemplo, hoje indissociável da festa do Momo, passou muitas décadas desconhecido do resto do país. Foi só a partir de fim dos anos 1970 que o som baiano se tornou uma das marcas de nosso Carnaval e nacionalmente reconhecido.

São Paulo tem uma história ainda mais recente com o Carnaval. Até menos de uma década atrás, o normal era os foliões paulistanos abandonarem a cidade em busca de praças carnavalescas. Por essas e outras, São Paulo já foi batizada por Vinícius de Moraes de "túmulo do samba". Isso vem mudando e os paulistanos curtem a cada ano que passa um Carnaval cada vez mais interessante. É um fenômeno vivido por outras cidades também. Belo Horizonte apresenta hoje um Carnaval igualmente pujante —e recente.

A música sertaneja é a música mais popular do Brasil. Nada mais natural que também toque na festa mais popular do país. Será que viveremos a transformação do Carnaval em festa sertaneja, ocupando o lugar do samba? Ou será que, num Carnaval multifacetado e plural, há espaço para todos e a música sertaneja será mais um dos gêneros a fazer os foliões dançarem? Quem sobreviver ao primeiro Carnaval pós-pandemia, verá!

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