Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Heloisa Buarque de Hollanda: a imortal e as patrulhas ideológicas

Escritora tem livro atualíssimo nestes tempos de cancelamentos e radicalismos culturais

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No dia 20 de abril, a escritora, crítica literária e professora universitária Heloisa Buarque de Hollanda foi eleita para a Academia Brasileira de Letras. Autora de diversos livros sobre feminismo, poesia, cultura marginal e arte, Heloisa era desde sempre a favorita entre os concorrentes para ocupar vaga de imortal.

Diante de sua grandiosa obra, um livro importante foi esquecido por todos os jornais e sites que veicularam a notícia: "Patrulhas Ideológicas: arte e engajamento em debate", publicado em 1980, infelizmente hoje fora de catálogo. Trata-se de um texto fundamental ainda em nosso tempo, época de vigílias identitárias e cancelamentos.

Heloísa Helena Oliveira Buarque de Hollanda, ensaísta, escritora, editora e crítica literária - Tércio Teixeira/Folhapress

O livro de Heloisa é uma coletânea de entrevistas e textos sobre a polêmica cultural vivida nas artes nacionais quando da redemocratização. Com a gradual volta das liberdades civis pós ditadura, uma disputa se instaurou entre as esquerdas em torno do novo contexto cultural e político.

O livro abre com a entrevista "Cacá Diegues: por um cinema popular sem ideologias", publicada em 31 de agosto de 1978 no jornal O Estado de S.Paulo, que iniciou a polêmica. O cineasta se sentia cerceado por questionamentos políticos de grande parte da crítica de esquerda, que esnobava seus filmes, e cunhou o termo "patrulha ideológica": "O que existe é um sistema de pressão, abstrato, um sistema de cobrança. É uma tentativa de codificar toda manifestação cultural brasileira. Tudo o que escapa a essa codificação será necessariamente patrulhado", disse Cacá.

O diretor Cacá Diegues durante as gravações de "Deus Ainda É Brasileiro", em Alagoas
O diretor Cacá Diegues durante as gravações de "Deus Ainda É Brasileiro", em Alagoas - Gabriel Moreira/Divulgação

A partir de então, todos quiseram dar pitaco no tema. Diversos jornais e revistas realizaram entrevistas com artistas tendo como tema a patrulha ideológica. A reunião dessas entrevistas deu origem ao livro, lançado dois anos depois, organizado por Heloisa e pelo professor Carlos Alberto Pereira. Muitas das entrevistas feitas pelos pesquisadores são reveladoras do tom das discussões da época e ajudam a entender melhor o debate cultural brasileiro do que dezenas de teses e ensaios escritos sobre o período.

A patrulha vinha de todos os lados. Um dos que se manifestaram na polêmica foi o compositor Aldir Blanc, que disse: "O artigo do Cacá bota o ovo em pé. Fazendo letras [de canções] com um conteúdo político mais declarado, tenho levado uma porção de cacetadas, um achincalhe dizendo que é uma obra esquerdizante, sem nenhum valor".

Uma das polêmicas mais instigantes coletadas por Heloisa foi a de Caetano Veloso e do cartunista Henfil, jornalista do Pasquim. Caetano disse em 1978 que os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país eram dominados por uma "esquerda medíocre, de baixo nível cultural e repressora", que pretendia policiar "essa força que é a música popular no Brasil". E completou: "Eles se acham no direito de esculhambar com a gente, porque se julgam numa causa nobre, quando não tem nobreza nenhuma nisso. São pessoas que obedecem a dois senhores: um é o dono da empresa, o outro é o chefe do partido".

O cartunista Henfil retrucou argumentando que Caetano teria sido "extremamente covarde" ao denunciar seus críticos como membros do Partido Comunista, especialmente "num país onde comunismo dá cadeia, torturas e até morte". Irônicos, os jornalistas do Pasquim criaram os apelidos de "bahiunos" e "patrulha Odara" para ironizar Caetano e seus amigos tropicalistas, fazendo piada com o fato de que através deles a "alienação" contracultural teria invadido o Rio de Janeiro. Como se vê, o tema era quente.

É lamentável o apagamento do livro "Patrulhas Ideológicas" da bibliografia da imortal Heloisa Buarque. Nem a própria se lembrou de incluí-lo em seu resumo profissional publicado na plataforma Lattes, o currículo oficial de todo acadêmico brasileiro. Outros 12 livros que ela escreveu se encontram no resumo que abre sua página, menos o iluminador "Patrulhas Ideológicas".

Mas por que um livro tão importante foi esquecido? Vejo vários motivos. Esse não é um livro "de autor", afinal trata-se de uma coletânea de entrevistas e textos da época. Ainda por cima, "Patrulhas Ideológicas" foi produzido em parceria, o que atrapalha a ideia de genialidade comumente associada a um imortal. Mas talvez o principal motivo para o esquecimento dessa obra seja o fato de que ela incomoda ainda nos dias de hoje.

Tomara que, em celebração à merecida condição de imortal de Heloisa Buarque de Hollanda, "Patrulhas Ideológicas: arte e engajamento em debate" seja republicado em breve. É um livro atualíssimo em época de cancelamentos, radicalismos culturais e patrulhas identitárias do século 21.

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