Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso
Descrição de chapéu LGBTQIA+

Gali Galó, o queernejo e a polissemia da arte

Com 'Na Frente dos Bois', artista atinge rara união de simplicidade, singeleza e multiplicidade de sentidos

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Enquanto a seara mais midiática da música sertaneja cai de cabeça no agronejo, subgênero rural que canta o agronegócio de forma tão evidente quanto tacanha, outros artistas dão sinais de respiro ao gênero.

É o caso de Gali Galó, artista que vem se destacando dentro do que se convencionou chamar de "queernejo".

pessoa branca não-binária de chapéu de caubói e jaqueta dourada
Gali Galó se apropria de termos como "caminhoneira" para cantar sobre a vivência lésbica e não-binária - Instagram/@gali.musica/Reprodução

O queernejo é um movimento que, desde 2019, vem balançando as estruturas machistas da música sertaneja. Trata-se de um conjunto de artistas LGBTQIA+ que se apropria das tradições sertanejas e as funde com o discurso identitário contrário à heteronormatividade.

Natural de Ribeirão Preto, Gali Galó se afastou de suas origens sertanejas durante os anos da adolescência, quando se enturmou na turma do rock. Surfou na cena indie e se mudou para São Paulo, onde se formou em publicidade e desenvolveu carreira como Camila Garófalo.

Em 2015, ouviu as primeiras artistas do feminejo, Maiara e Maraísa e Marília Mendonça, e percebeu que era possível unir suas raízes sertanejas com sua sexualidade assumida.

Na complicada definição de gênero e sexualidade de hoje em dia, Gali Galó se define como "não binário transmasculino que prefere os pronomes masculinos e neutros". No entanto, em seu seu disco de estreia, há todos os pronomes: masculino, neutro e até mesmo o feminino, como a faixa "Caminhoneira", na qual "canta sua vivência sapatônica", como ele define.

O questionamento de padrões comportamentais traz algumas dificuldades para os sertanejos LGBTQIA+. "São alternativos demais para entrar no circuito sertanejo, e sertanejos demais para entrar na programação do Sesc", ironiza Gali Galó.

O limbo do não lugar põe o queernejo como música independente, distante dos grandes fluxos comerciais da música sertaneja e sem espaço na cena alternativa institucionalizada.

Mas isso não impede lampejos de criatividade interessantes dos artistas do queernejo. É o caso de "Na Frente dos Bois", de autoria de Gali Galó e Gabeu, outro ícone do queernejo, que participa do clipe. A letra da música chama atenção por sua singeleza, aparente simplicidade e múltiplas leituras possíveis:

"Tem tanta coisa acontecendo na cidade /São tantos prédios, há tantos lugares/ Mas aqui dentro lembro da minha terra/ Dos domingos na pracinha// Tem tantos carros na velocidade/ São tantos planos, possibilidades/ Mas era lá que eu respirava fundo/ Inventava o mundo/ Nos braços da minha mãezinha// Hoje mesmo vou entrar nesse busão/ Com destino ao lugar mais calmo do meu coração// Não adianta colocar/ O carro na frente dos bois/ Você vai entender depois/ Que tudo tem seu tempo/ Pra acontecer// Dentro da mala vou levar/ Canções com velhos ideais/ Sossego que não volta mais/ Mas o orgulho de ser quem eu sou/ Permanece em paz".

"Na Frente dos Bois" remonta às melhores tradições da música sertaneja que falam com romantismo das origens rurais, como "Deus e Eu no Sertão" (2007), de Victor & Leo, "Caipira" (1992), de Chitãozinho & Xororó, "No Dia em que Eu Saí de Casa" (1995), de Zezé Di Camargo & Luciano e "Saudade da Minha Terra" (1967), de Belmonte e Amaraí.

A letra de "Na Frente dos Bois" pode ser lida dentro da chave tradicional do interiorano que abandona a terra natal, mas, na boca dos cantores queers, ganha sutis conotações de deslocamento de gênero e sexualidade, ampliando as possibilidades da singela letra.

Em outras canções de seu disco de estreia, lançado neste ano, Gali Galó explana a temática homossexual de forma mais explícita.

Em "Aceita", Galó fala sobre assumir sua identidade: "Vou sair lá fora pra gritar/ Tudo que lá em casa não chegou/ Vou amar direito, do meu jeito/ Todo esquerdo/ Vou e vou com ela até o fim".

Mas é em "Na Frente dos Bois" que algo que vem sendo frequentemente subestimado pela produção queer ganha relevo: a polissemia da arte, ou seja, a ideia de que uma música não tem apenas um sentido único.

Diante de tantas justas lutas políticas identitárias, quase sempre a estética queer vem esquecendo que a arte pode até servir a um projeto político, mas não se restringe apenas a ser bandeira de movimento político.

A boa arte pode sempre mais. E Gali Galó conseguiu com "Na Frente dos Bois" uma rara união de simplicidade, singeleza e multiplicidade de sentidos que só enriquece seu valor artístico. No mundo pop, cheio de convenções e temas batidos, Gali Galó encontrou um verdadeiro achado.

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