Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Os dez anos da morte de Dominguinhos, o mestre inesquecível da sanfona

Calmo e afetivo, músico se aventurou por diversas searas e construiu pontes impensáveis entre a alta e a baixa cultura

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No último dia 23 de julho fez dez anos da partida do inesquecível sanfoneiro Dominguinhos. Nascido em 1941 em Garanhuns, interior de Pernambuco, Dominguinhos foi retirante de pau de arara. Migrou para o Sudeste aos 14 anos, depois de viver os dramas da fome e da miséria na infância.

Na capital fluminense, Dominguinhos tornou-se um seguidor de Luiz Gonzaga, de quem se tornou uma espécie de filho adotivo e com quem gravou pela primeira vez em 1957. De personalidade muito distinta do afilhado, Gonzaga era temperamental, mandão e autoritário.

Dominguinhos era calmo, afetivo, não gostava de briga. Quando perguntado sobre como ele reagia aos constantes desmandos do rei do baião, o sanfoneiro dizia: "cabrito bom não berra".

Depois de conhecer o mundo "gonzaguiano" em seu auge nos anos 1950, Dominguinhos partiu para flertar com outras searas. Aprendeu a tocar outros ritmos nas boates da época e se tornou um requisitado músico de estúdio antes mesmo da fama.

Tocava choro, jazz, bolero, bossa nova, samba e o que mais viesse pela frente. Com isso ganhou cancha para atravessar fronteiras sociais. Sintetizando tradição e modernidade, o popular e o erudito, a baixa e a alta cultura, criou uma música migrante, assim como ele.

Não é necessário ser fã de Dominguinhos, nem ter seus discos ou gostar de forró para ouvi-lo. Diversos clássicos da música brasileira foram gravados com o músico no estúdio.

Dominguinhos se apresenta no Festival de Verão do Guarujá, no litoral paulista, em 1982 - Álvaro da Costa/Folhapress

Se você já se embasbacou com a sanfona de "Frevo Mulher", canção composta por Zé Ramalho que Amelinha gravou em 1979, já ouviu Dominguinhos. Se já se encantou com o doce som da sanfona de "Cajuína" ou "Oração ao Tempo", gravadas por Caetano Veloso no disco "Cinema Transcendental", de 1979, saiba que ali também há o toque de Dominguinhos.

Ele também gravou a faixa "Calix Bento", gravada no LP "Geraes", lançado em 1976 por Milton Nascimento. O som do acordeão de "Índia", faixa do disco homônimo de Gal Costa lançado em 1973, também era de Dominguinhos. Gilberto Gil gravou com o sanfoneiro o clássico LP "Refazenda", de 1975, e letrou "Lamento Sertanejo", um hino do retirante nordestino.

Chico Buarque gostou tanto da melodia de "Tantas Palavras", que chamou o compositor-sanfoneiro para gravá-la em 1984. Com Roberto Carlos, Dominguinhos gravou em 1998 "Baile na Fazenda", raríssimo forró composto pelo rei e seu parceiro Erasmo Carlos.

O sanfoneiro também gravou sua sanfona em discos de Fagner, Maria Bethânia, Fafá de Belém, João Donato, Zizi Possi, Ednardo, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Agepê, Lenine, Leoni, Jair Rodrigues, Orlando Morais, Chico César, Marcelo Camelo, Jair Rodrigues e Paulinho Moska.

A cantora Nara Leão fez turnê com o sanfoneiro em 1978 e disse: "Ele tem uma musicalidade fora do comum. Para mim ele está no mesmo nível de João Gilberto. Ele é meu ídolo". Naquele mesmo ano, Elis Regina também fez elogios ao sanfoneiro: "Eu acho o Dominguinhos uma loucura, um barato. Ele não sabe, mas é um dos melhores músicos do mundo".

Sem nunca deixar de ser um forrozeiro nato, Dominguinhos também foi admirado em outras searas populares. Ele gravou em discos de Ângela Maria, Gaúcho da Fronteira, Jane & Herondy, Maurício Mattar e se apresentou ao lado de Ivete Sangalo. Gravou até com Xuxa e o padre e cantor Fábio de Melo.

Dominguinhos era múltiplo de verdade. Na música sertaneja gravou sua sanfona em discos de Roberta Miranda, Sérgio Reis e César Menotti & Fabiano e era idolatrado por Zezé Di Camargo.

O mestre da sanfona sabia flanar pelo som popularesco e também entre os eruditos. Entre os músicos instrumentais, muitos admiravam Dominguinhos. Ele gravou com os pianistas Gilson Peranzzetta e Wagner Tiso, o violonista Yamandu Costa, o baixista Arthur Maia, entre outros.

Apesar de reconhecido por canções como "Eu Só Quero um Xodó" e "Tenho Sede", compostas com Anastácia, e "De Volta pro Aconchego" e "Gostoso Demais", em parceria com Nando Cordel, Dominguinhos nunca deixou de gravar ao menos uma faixa instrumental em seus discos. Assim surgiram pérolas como "Nilopolitano", "Princesinha no Choro" e "Noites Sergipanas", entre outras.

O toque do sanfoneiro era capaz até de sensibilizar ouvintes estrangeiros, se estes viessem apreciá-lo no Brasil. Dominguinhos desenvolveu um pavor de avião que privou-o de viagens internacionais. Mas aqueles gringos que tiveram a sorte de ouvir sua sanfona empolgaram-se.

Até o grande guitarrista Eric Clapton deixou-se fascinar por sua música e gravou uma versão de "Tenho Sede" em 1976.

É relativamente raro encontrar um artista com tamanha desenvoltura entre gêneros musicais tão diversos, capaz de atravessar tantas fronteiras, especialmente na segunda metade do século 20 no Brasil.

Antes da fluidez da internet, era comum que os gêneros construíssem muros em torno de si, inviabilizando que a música fosse consumida indistintamente. Dominguinhos foi uma dessas pontes improváveis entre a alta e a baixa cultura.

Por tudo isso, Dominguinhos é um gênio não apenas musical, mas social. Ele foi um retirante erudito. Sua biografia, cuja escrita concluo em breve, mostrará os dilemas profissionais, pessoais e estéticos que ele teve de enfrentar para se tornar quem foi. Espero suprir essa lacuna à altura de sua genialidade.

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