Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu festa junina

Todo São João voltamos à discussão sobre tradição preservada ou inovação

Folcloristas e modernizadores brigam pela posse dos grandes palcos e não pela autonomia na organização da festa popular

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A polêmica que polarizou a internet brasileira na última semana envolveu o São João. As apresentadoras do programa Saia Justa, na GNT, Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli, divergiram em relação ao sentido da festa.

Para Fontenelle, cidades nordestinas deveriam proteger o forró da invasão do axé e da música sertaneja. Prioli lembrou que a cultura está sempre em mudança e que não é recomendável encarcerá-la sob um viés folclorista que, no fundo, representa uma visão elitista do fazer cultural, que gosta de determinar o que o povo deve ou não consumir.

Festejos juninos do São João da Bahia e Arrastão do Sabiá, no município de Gandu, na Bahia - GOVBAFeijão Almeida/GOVBA

Esse é um debate que ecoa todo São João. Entre as protagonistas dessa disputa estão as cidades de Campina Grande, na Paraíba, e Caruaru, em Pernambuco, que brigam pelo título de maior São João do mundo. O que deve tocar nessas festas é a questão. No fundo, tanto folcloristas (Fontenelle) quanto os modernizadores (Prioli) nada falam sobre as estruturas da festa em si.

Até a década de 1980 os festejos do São João nordestino eram rituais comunitários, conduzidos pela sociedade civil. Vizinhos organizavam a festa montando os "palhoções", palcos improvisados para artistas e coberturas para as atividades dos festejos.

Cada rua montava sua fogueira e contratava artistas locais para animar os visitantes. Eram famosas as competições entre ruas e bairros para ver quem fazia o São João mais animado, mais decorado, mais iluminado, mais bonito.

O São João também era celebrado em clubes, bancados pelos ingressantes. Em Campina Grande, por exemplo, havia o Clube dos Caçadores, o Ipiranga, o Paulistano, o Campinense, o Clube 31, entre outros.

A renda obtida com bebidas, comidas e com a venda de ingressos era frequentemente revertida para obras locais. O mesmo acontecia com o festejo realizado nos pátios e auditórios das igrejas de bairros. Eram festas da sociedade civil, das quais o Estado praticamente não participava.

Se há dúvida em relação a qual o maior São João do Nordeste, não há pendenga sobre qual cidade iniciou o processo de transformação: Campina Grande. Foi em 1986 que a prefeitura de Campina Grande construiu um espaço para centralizar os festejos, o parque do Povo.

Ao longo dos anos, a festa tornou-se um grande entretenimento, envolvendo membros do Estado, empresários do setor artístico e setor hoteleiro. E as festas comunitárias foram sendo sufocadas.

Para não ficar para trás, Caruaru criou o Pátio do Forró, um amplo espaço perto do centro da cidade para festejar o São João. E, assim como na rival, o São João centralizou-se num único polo, sob as bênçãos de políticos patrimonialistas. Eles davam o show, mas retiravam da sociedade civil a autonomia da organização dos festejos.

Com o passar do tempo a festa foi se tornando um megaevento. Não é à toa que o primeiro São João nessa toada tenha acontecido em 1986, um ano depois do Rock in Rio. Com o festival carioca foi instaurado um modelo de festa para as multidões no Brasil. Foi só nos anos 1980 que a qualidade técnica permitiu que sons de crescente qualidade fossem despejados nas multidões.

Antes não havia som e luz capazes de tal empreitada. Grande parte dos shows de Luiz Gonzaga, por exemplo, foi feita em circos, auditórios de rádio, carroceria de caminhão e eventualmente em teatros. As performances gonzaguianas eram para poucas centenas de pessoas, no máximo. Mas tudo mudou.

Com o progresso tecnológico do áudio nacional pós-Rock in Rio, tornou-se possível se fazer ouvir por uma multidão. Desde então há essa disputa em torno do que deve ser o São João megaespetáculo: se moderno, incorporando as modas atuais, ou folclorista, preservador das tradições do forró. Mas não se discute o modelo de festa.

Ambos os lados da contenda brigam mais pela posse dos grandes palcos do que pela volta da autonomia da sociedade civil na organização da festa. No máximo os folcloristas lutam pela descentralização da festa, mas sempre capitaneada por um Estado tutelar. Libertar-se do Estado patrimonialista nunca é uma opção.

Uma pena. Mais do que cantar o folclore, recuperar a tradição mesmo seria subverter o atual sentido da festa. Para isso é preciso muito mais do que brigar por palcos estatais. É preciso querer democratizar a festa num sentido profundo.

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