Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu
The Town

Como 'Evidências', de Chitãozinho e Xororó, virou novo hino nacional

Música que Bruno Mars cantou no The Town voltou a ser sucesso popular mais de três décadas após seu lançamento

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No último domingo, Bruno Mars fez um show espetacular no The Town, festival musical realizado no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Chamou a atenção o fato de que "Evidências", canção de Chitãozinho e Xororó, foi cantada na íntegra pelo público, acompanhada pelo pianista do cantor, num dos pontos altos da apresentação.

Grande parte da imprensa e dos fãs repetiu que "Evidências" é o novo hino nacional brasileiro, tamanha sua popularidade em todas as classes, idades, gêneros e regiões do país. O que nos leva à questão: quando "Evidências" passou a ser chamada de "hino nacional"?

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A dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó - Adriano Vizoni/Folhapress

"Evidências" foi composta por José Augusto e Paulo Sérgio Valle, num esquema de produção industrial de canções românticas do fim dos anos 1980. A canção não tinha nada de especial a priori. Nem entrou no disco de José Augusto, vetada pelos produtores.

Diante do desprezo geral, Michael Sullivan pediu para mostrar a canção a seu irmão, o também cantor Leonardo Sullivan, que se tornou o primeiro a gravá-la em 1989, sem nenhuma repercussão. O novo "hino nacional" parecia condenado ao esquecimento.

Quando Chitãozinho e Xororó montavam repertório para o disco "Cowboy do Asfalto", de 1990, José Augusto ofereceu "Evidências", que se tornou o carro chefe do LP e um sucesso imediato.

A história da canção envolve ainda outros paradoxos interessantes. O parceiro Paulo Sérgio Valle tinha se destacado décadas antes como um dos principais compositores da bossa nova: "Eu tenho duas músicas de grande execução: ‘Samba de Verão’, que é um sucesso mundial, e, no Brasil, ‘Evidências’", contou o compositor. O sertanejo encontrava a bossa na produção de Paulo Sérgio Valle.

O sucesso popular da canção ajudou a sedimentar a música sertaneja na virada para os anos 1990, mas não agradou a todos. Na época, o crítico Tárik de Souza escreveu no Jornal do Brasil que "Evidências" não remetia ao caipira, pois conservava de sertanejo "apenas o tremolo vocal mariachi da dupla".

O crítico Hélio Muniz, de O Globo, escreveu sobre a canção quando os sertanejos começaram a fazer apresentações em casas de show tradicionais da MPB carioca: "Atenção: toda a população do Rio deve procurar os abrigos antiaéreos. A casa de espetáculos Canecão foi tomada por alienígenas. Os caipiras chegaram: o mar virou sertão. Não há saída. 'Pense em Mim', de Leandro & Leonardo, toca de cinco em cinco minutos em todas as rádios populares, fazendo dupla com 'Evidências', de Chitãozinho & Xororó. Tem gente pensando em vedar a casa ou emigrar para o Curdistão".

Apesar das críticas dentro do Brasil, "Evidências" ganhou o planeta. Chegou primeiro ao mundo hispânico por meio da cantora mexicana Ana Gabriel, com enorme sucesso em 1992. De lá para cá, foi cantada em inglês, francês e até em japonês em vídeos que não são difíceis de encontrar na internet.

Durante a pesquisa para meu livro "Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira", de 2008 a 2015, não vi nenhuma referência a "Evidências" como hino. Até 2017, a canção era cantada como um sucesso do passado, um clássico, a mais pedida dos karaokês Brasil afora, mas não era chamada de hino nacional.

Simbólica dessa transição foi o fato de que em 20 de março de 2017 o cantor Adam Levine, líder do Maroon 5, cantou "Garota de Ipanema" no Rock In Rio daquele ano e vários jornais e revistas chamaram a canção da bossa nova de hino.

O Brasil da primeira metade de 2017 ainda era muito parecido com o país do século 20. Mas tudo mudaria muito rápido, e "Evidências" ocuparia este lugar rapidamente.

Quatro meses depois houve um acontecimento que mobilizou a internet e ajudou a consolidar o imaginário popular acerca de "Evidências". Um vídeo da atriz Zenaide Denardi viralizou nas redes sociais mostrando a moça puxando "Evidências" em um vagão de metrô.

A revista Veja, em reportagem de 20 de julho de 2017, chamou a canção de hino e afirmou que a performance tinha 2,4 milhões de visualizações, 59 mil reações no Facebook e havia sido compartilhada por quase 29 mil pessoas. "Foi uma brincadeira que tomou proporções que eu não esperava", afirmava Zenaide.

Mas a história da canonização de "Evidências" não teve nada de natural. Zenaide tentou fazer com que as pessoas cantassem com ela duas vezes na estação, sem sucesso, antes de filmar a versão dentro do vagão que viralizou: "A maioria delas me olhava de cara feia. Mas resolvemos continuar cantando", contou a atriz. "Evidências" ainda não era um hino evidente.

Em agosto de 2017 a cervejaria Brahma, uma das patrocinadoras do rodeio de Barretos, no interior paulista, ajudou a consolidar o imaginário popular. O comercial da marca mostrava alguém puxando "Evidências" em um bar e causando reações emocionadas dos presentes.

Garçons, cozinheiros, velhos, jovens, homens, mulheres, brancos e negros, todos cantam. Ao fim da propaganda apareciam os dizeres: "Se Barretos virar a capital do Brasil, já temos o hino".

Em 5 de setembro de 2017 outro vídeo ajudou a viralizar a ideia de que "Evidências" era mais que um mero sucesso popular.

O padre-cantor Fábio de Melo publicou no Instagram um vídeo gravado num restaurante de Estocolmo dizendo: "Momento patriótico na Suécia. Hasteamos a bandeira e cantamos o 'hino nacional' brasileiro". Em seguida o padre entoou "Evidências" com um grupo de peregrinos.

Poucos meses depois, a canção foi usada em outubro de 2017 em protestos contra as más condições dos bandejões universitários país afora. O primeiro desses protestos aconteceu no bandejão da Unicamp, em Campinas, no interior paulista, mas a moda se espalhou e chegou aos campi federais do Rio de Janeiro, Juiz de Fora, em Minas Gerais, e Brasília.

Em 2018 a canção passou a ser largamente aceita como hino não oficial e foi entoada pela torcida em vários momentos da Copa do Mundo da Rússia em Rostov, Moscou e Kazan, cidades que receberam jogos da seleção.

Chama a atenção que a canonização de "Evidências" tenha acontecido num dos períodos mais fratricidas de nossa história, logo após o impeachment de Dilma Rousseff. Não havia quase nada a unir o país, apenas o romantismo desbragado de uma velha canção.

Em 2019 a canção finalmente virou trilha sonora de novela e tocou em "A Dona do Pedaço", dramaturgia da TV Globo que teve Juliana Paes como atriz principal.

"Evidências" faz parte do grande número de canções sertanejas, como "É o Amor", "Entre Tapas e Beijos", "Saudade bandida" e "Desculpe, Mas Eu Vou Chorar", que não dependeram da intensa execução em novelas nos anos 1990 para se tornarem grandes sucessos. Tocar em novela foi apenas a cereja do bolo, e, no caso de "Evidencias", aconteceu apenas 30 anos depois da primeira gravação.

E a música seguiu sua rota em direção à unanimidade. Em 2022, ela foi entoada por Andreas Kisser, guitarrista do Sepultura, ao lado de Chitãozinho e Xororó.

Foi em 28 de setembro que o metaleiro chamou a dupla sertaneja para entoar "Evidências" num evento beneficente em homenagem a sua mulher, Patricia Kisser, morta precocemente de câncer. O encontro inusitado repercutiu, pois muitos não sabiam que Patricia era madrinha do filho de Sandy, neto de Xororó, e grande fã da dupla.

A Copa do Qatar em 2022 gerou novas mobilizações. Em 24 de novembro, Xororó e seu genro, Lucas Lima, publicaram um vídeo no Instagram no qual apareciam cantando "Evidências" de forma solene, bem na hora do jogo do Brasil, ambos com a camisa da seleção.

Naquela Copa, o Brasil ganhou da Coreia do Sul nas oitavas de final. Foi quando um vídeo do embaixador da Coreia, Lim Ki-mo, cantando "Evidências" viralizou nas redes sociais. A cena aconteceu em uma festa promovida pela embaixada em Brasília, na qual convidados coreanos e brasileiros assistiram à disputa das oitavas de final da Copa do Mundo.

"Evidências" deixou de ser sertaneja e passou a ser a música de todos: estudantes, peregrinos, bebedores de cerveja, padres, mulheres, homens, famosos, anônimos, brancos, negros, embaixadores, sertanejos, metaleiros, esquerdistas e direitistas, entoada com a mesma força de norte a sul do Brasil. E a denominação "hino nacional" pegou de vez.

Mas, apesar da virtual unanimidade, ainda há algumas resistências. E algumas delas remontam a períodos tensos do passado.

Em 2021 o compositor José Augusto proibiu que Maria Bethânia, diva mor da MPB, regravasse a canção. A cantora cantou "Evidências" numa live de 13 de fevereiro, com muita repercussão, mas foi proibida de pôr a versão em disco.

Na época especulou-se que a censura devia-se a antigas rusgas entre o autor e a baiana. "Ele está no direito, não gosta da cantora, não deixa ela cantar", limitou-se a dizer Bethânia. Menos magoados com o passado, Chitãozinho e Xororó agradeceram: "Ter a nossa música cantada por uma das maiores vozes do Brasil é uma honra enorme! Nos emocionamos demais. Muito obrigado, amiga Maria Bethânia!", escreveram.

Se a diva da MPB não conseguiu gravar a música, o rei Roberto Carlos finalmente gravou "Evidências" em 2022 e a canção entrou em outra trilha sonora de novela da Globo, desta vez em "Travessia".

Em 2 de setembro de 2023, alguns dias antes da apresentação de Bruno Mars no The Town, a vice-presidente executiva do festival, Roberta Medina, explicou por que não havia artistas sertanejos no palco do festival: "Tem tantos ritmos que não estão aqui dentro. O Brasil é sertanejo e a gente não tem nada contra. Mas o The Town e o Rock in Rio seguem uma linha pop rock".

No entanto, o que se viu foi que os sertanejos fagocitaram o The Town por dentro. Além de Bruno Mars emplacar "Evidências" em seu show, a cantora Luísa Sonsa fez uma homenagem à sertaneja Marília Mendonça ao cantar "Melhor Sozinha", canção que gravaram juntas.

Antes de iniciar, Luísa Sonza disse: "Essa música é uma homenagem a uma pessoa muito especial que faz parte da vida de todos nós, não só da minha. É uma das maiores artistas desse mundo e que encantou e abrilhantou este país e mudou a música brasileira de uma maneira inigualável. Essa é por Marília Mendonça".

Em sua ultima apresentação no The Town, no dia 10, o show de Bruno Mars incluiu "Evidências" novamente, com a mesma repercussão. Desta vez Xororó estava na plateia e cantou junto. A construção do novo "hino nacional" ilustra o quanto o Brasil têm mudado seus valores musicais no século 21.

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