Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Marília Mendonça, a comédia e o limite do humor

Na pressa de se expor nas redes sociais, a fronteira público-privado se confunde

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Poucos jargões atuais são tão batidos quanto "o limite do humor". Numa sociedade patrulheira como a nossa, a discussão voltou à baila quando a comediante Giovana Fagundes fez uma piada sobre Marília Mendonça exatamente na semana em que se completou dois anos da morte da cantora sertaneja, em um acidente aéreo.

Antes de embarcar em um avião de pequeno porte do Rio de Janeiro para São Paulo, na quarta-feira (8), a comediante estava visivelmente nervosa. Foi quando publicou um vídeo no stories do Instagram: "Olha o tamanho do avião que falaram que vou embarcar! Vou de teco-teco, vou de Marília Mendonça para São Paulo! Então estou fazendo esse story para dizer a todo mundo que me ama que eu amo vocês de volta".

Marília Mendonça morreu no auge de sua carreira, em novembro 2021
A cantora Marília Mendonça - Divulgação

Giovana Fagundes aparentemente faz parte daquele rol de pessoas que, como eu, usamos humor para disfarçar nossos próprios medos. É uma forma civilizada de não surtar diante de situações angustiantes. Nosso ídolo é o ator Matthew Perry, recentemente falecido. Seu personagem Chandler, da série Friends, ficou famoso por fazer piadas sem noção, desconfortáveis ou fora de hora, mas sempre muito engraçadas, de forma a disfarçar a própria inadequação.

O ator Matthew Perry em 2009 - Phil McCarten/Reuters

A repercussão da piada foi instantânea na "cracolândia digital", expressão cunhada pelo pensador Eduardo Giannetti para se referir às mídias sociais brasileiras. Em nosso mundo virtual nada é ponderado, nada é refletido, tudo é instantâneo. Isso vale tanto para a piada da comediante quanto para os comentários dos haters dispostos a crucificá-la.

A arapuca em que Giovana entrou pode ser atribuída à frequente confusão entre esfera pública e dimensão privada da internet. Na pressa de se expor nas redes sociais, as fronteiras entre público e privado se confundem. A aparência de uma página "pessoal" dá a impressão de que nela podemos ser "nós mesmos". Não é assim: as redes sociais são a esfera pública em seu lado mais trucidador. Não há argumentos, apenas ódio. Não se perdoa qualquer vacilo, apenas condena-se. Os haters raivosos gozam com a perseguição bárbara, tal como um bando de rapina.

A piada de Giovana Fagundes passaria tranquilamente em qualquer roda de bar. Talvez fosse até brindada entre bons amigos, todos com riso de canto de boca para aliviar a culpa cristã. Mas passaria. Como amante de piadas ruins, eu brindo com a comediante.

Criticada por todos os lados, até pela mãe e irmão de Marília Mendonça, Giovana cumpriu à risca o script do cancelado da semana. Em nova sequência dos stories ela afirmou: "Quero pedir desculpas pelo meu erro. (...) Queria deixar claro que em nenhum momento tive a intenção de fazer piada com a morte". De nada adiantou. Ela continuou sofrendo a crucificação em praça pública. Até porque a intenção era fazer piada mesmo e a emenda saiu pior que o soneto.

Contribuiu muito para a perseguição da comediante o fato de que Giovana desenvolve boa parte do seu humor fazendo piada patrulheira, quase sempre muito engraçada, contra machistas, misóginos e racistas da internet. A patrulha virou-se contra a patrulheira.

A questão do limite do humor parece-me sempre mal colocada. Ora, quem tem limite é o indivíduo que está na plateia, não a arte do humor. O comediante não tem como levar em conta o limite individual de cada um. Se a convenção social tem seus limites sensíveis, o papel de qualquer bom artista é alargar esses limites, de preferência subvertendo-os.

No caso do humor, uma das tarefas do bom comediante é estender as fronteiras do risível. A piada não foi engraçada? Ok, bola pra frente, vida que segue. Vamos à próxima tentativa. Seja qual for o veredicto sobre a piada, a execração pública tampouco foi louvável. Uma pena que a comediante tenha recuado, cedendo às pressões autoritárias de nossa "cracolândia digital".

Em 28 de setembro passado, Giovana Fagundes celebrou ter alcançado 1 milhão de seguidores no Instagram, a mesma plataforma onde começaria seu apedrejamento um mês mais tarde. Em nosso mundo digitalmente interligado todos teremos, além de 15 minutos de fama, como previu Andy Warhol, também 15 minutos de cancelamento. Vida que segue.

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