Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Estética do churrasco cresce no sertanejo e toma o lugar do arroz e feijão

Clipes e DVDs de artistas têm como pano de fundo a encenação de confraternizações com muita carne assada ao ar livre

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A estética do churrasco vem adentrando de forma cada vez mais evidente a música sertaneja. Vários DVDs e clipes de artistas atuais têm como pano de fundo a encenação de confraternizações mediadas pela cultura da carne assada ao ar livre, ilustrando um Brasil que parece substituir simbolicamente o feijão com arroz pelo churrasco como símbolo da identidade nacional.

Imagem do festival 'BBQ Mix'
Imagem do festival 'BBQ Mix' - Divulgação

Em 11 de agosto de 2019, Fernando e Sorocaba gravaram na cidade de Indaiatuba, no interior paulista, o DVD "Isso É Churrasco Onfire". Em 2023 eles repetiram a dose do projeto, no qual celebram a cultura carnívora com patrocínio da Friboi.

Em entrevista à coluna de Leo Dias, do Metrópoles, o sertanejo Sorocaba comentou: "Como os nossos fãs já sabem, o churrasco é muito mais do que comer bem, é estar em volta do fogo, entre amigos, para dividir bons momentos, ouvir música e falar das coisas boas da vida. Isso sempre foi uma rotina em casa, mas poder amplificar isso para um número maior de pessoas como está sendo feito no ‘Isso É Churrasco OnFire’. Está sendo mágico!".

Outros artistas seguiram o modelo. Pouco antes da quarentena, em março de 2020, Michel Teló lançou o DVD "Churrasco do Teló", no qual realizava um show ao ar livre e uma caminhonete servia de churrasqueira portátil.

É muito comum ver fotos de churrasco nas redes sociais dos artistas sertanejos, seja nos encontros da vida particular com a família e amigos ou até mesmo quando se reúnem para compromissos profissionais, especialmente para compor. Mas até pouco tempo atrás a autopromoção por meio da estética churrasqueira não estava presente na música sertaneja.

A apologia da carne em clipes e DVDs é uma estética relativamente nova. Mesmo na geração universitária, aquela surgida a partir de 2005, à qual pertencem Fernando e Sorocaba e Michel Teló, essa estética praticamente não existia. Embora houvesse canções que falassem de churrasco, a estética dos clipes musicais não contemplava essa celebração.

A referência a churrasco nos shows e nos videoclipes ganhou força com o surgimento do "agronejo", segmento do sertanejo mais diretamente afinado ao agronegócio surgido por volta de 2020. A partir dessa guinada temática, tornou-se comum ver cenas de animais no espeto, carnes sendo salgadas e brasa dourando nos videoclipes.

Em "Nois É da Roça, Bebê", canção de 2021, Ana Castela aparece preparando ela mesma o churrasco para as amigas e cantando: "Aqui nóis é da roça, bebê/ o sistema eu vou falar pro cê/ Nóis gosta de som trepidando/ cerveja e churrasco…". Em "Chaaama" (2021), Zé Neto e Cristiano comentam: "Churrasco, viola, no meio ou no fim de semana/ Chaaama/ E se tiver Brahma gelada, aí que nóis derrama/ Chaaama".

O DVD "Churrasco, Cerveja e Viola", uma coletânea de músicas cantadas por artistas sertanejos veiculada no YouTube e nas plataformas digitais em 2020, mostra cenas de um churrasco campal, com leitões e muito gado sendo assados inteiros ao ar livre.

Em fevereiro de 2020, a Audiomix, um dos principais escritórios empresariais do mundo sertanejo, criou a primeira edição do festival musical BBQ Mix, que reuniu 40 mil pessoas em Goiânia. O evento entrou para o Guinness World Records como a maior quantidade de porções de carne bovina servidas em oito horas—23 mil porções com peso entre cem gramas e 130 gramas.

Durante o evento houve uma chuva intensa que prejudicou os resultados desejados pelos produtores. Em 2022, o evento, realizado no estacionamento do Estádio Serra Dourada, bateu o próprio recorde com 52 mil porções servidas —tudo mediado por shows de Bruno e Marrone, Matogrosso e Mathias, Edson e Hudson, Gian e Giovani, Barões da Pisadinha e vários outros artistas.

Assim, a estética carnívora foi sendo incorporada pela cultura "mainstream" dos grandes shows sertanejos, transformando simbolicamente hábitos alimentares históricos do brasileiro.

Historicamente, a carne não fazia parte da dieta do brasileiro. Foi dos anos 1970 para cá, com o aumento exponencial de cabeças de gado no país, que a massificação da cultura da carne se impôs como hábito alimentar entre os setores médios e até nas classes baixas.

No país onde vivem mais bois do que gente, a cultura carnívora é propagandeada como símbolo de status. Diante do marketing do agronegócio, tensiona-se o imaginário do país do feijão com arroz, que tanto marcou a identidade brasileira no século 20. Popular, barato e vegetariano, o feijão com arroz era o prato do povo brasileiro, até na sua mistura de cor.

Se somos o que comemos, o Brasil carnívoro cantado pelos sertanejos aponta para outra identidade alimentícia. Proteicamente, pode até ser que haja ganhos. Resta saber melhor quais serão os resultados simbólicos dessa incorporação.

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