Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Tião Carreiro continua moldando gerações caipiras e sertanejas

Sem nenhum museu, filme ou biografia sobre esse artista, Brasil mostra o quanto está aquém dos seus ídolos

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No dia 15 de outubro faz 30 anos da morte daquele que é considerado o mais lendário violeiro do Brasil, o mineiro Tião Carreiro. Inventor de modas, moderno e tradicional ao mesmo tempo, seu virtuosismo marcou gerações de violeiros caipiras e sertanejos.

José Dias Nunes, o Tião, nasceu em 1934 em Monte Azul e foi criado em Montes Claros, ambas cidades do norte de Minas Gerais. Um de sete irmãos, filho de lavradores pobres, ele foi migrante pau de arara aos dez anos.

José Dias Nunes, conhecido como Tião Carreiro - Alex Marli Dias Silva/Divulgação

Depois de viver em várias localidades do interior do estado de São Paulo, acabou se instalando em Araçatuba, onde iniciou a carreira. Tocador desde a infância, aos 16 anos largou o emprego de garçom e a vida artística começou como a de vários outros de sua época, em concursos de rádio e aparições em circo.

Foi em 1954, justamente num circo do interior, que ele conheceu aquele que seria seu mais famoso parceiro, o cantor e violonista Pardinho, com quem construiu uma forma de cantar bastante sui generis. A segunda voz de barítono de Tião, mais grave, era colocada com mais destaque do que a primeira, algo diferente para os padrões da época, em que a voz aguda gritava sempre mais alto.

As canções eram compostas por eles, mas também por grandes compositores caipiras como Lourival dos Santos, Dino Franco, José Fortuna, Moacyr dos Santos e o lendário Teddy Vieira, compositor de "Menino da Porteira", que batizou o violeiro com o nome de Tião Carreiro.

A dupla histórica não foi imune a desavenças. O violeiro e o violonista tinham posturas muito diferentes e por diversas vezes os dois se separaram. Tião era boêmio e farrista, Pardinho metódico e recatado. No estúdio, Tião decidia em cima da hora o que gravaria, o que irritava Pardinho. Por isso Tião teve vários parceiros ao longo da vida: Carreirinho, Paraíso e Praiano foram alguns deles.

Violeiro intuitivo, Tião Carreiro jamais frequentou escola de música. Sua grande inovação, o pagode de viola, foi autodidata. O toque apresentava certo grau de sofisticação em função da frenética movimentação das mãos. A mistura de toques de viola e elementos musicais relacionados à catira e ao recortado, duas danças caipiras tradicionais, deu origem ao novo gênero.

Associado à rítmica do violão, parceiro da viola que tocava em seus interlúdios, estabeleceu-se uma polirritmia até então incomum na música caipira. Foi batizado, novamente por Teddy Vieira, de pagode de viola, que se admirou com os solos rápidos e uso do "pizzicato", técnica de tocar as cordas do instrumento de forma semi-abafada, obtendo assim um timbre mais silencioso e percurssivo.

Foi o enorme sucesso de "Pagode em Brasília", de 1960, que mostrou ao mundo caipira a modernização proposta por Tião Carreiro & Pardinho.

O nome "pagode" pode causar algum estranhamento. Até meados do século 20, o termo se referia ao baile, encontro musical ou festa popular. Há músicas que fazem referência a pagode na obra de Luiz Gonzaga, na música caipira e, mais claramente, no samba, onde o termo passou até a designar um subgênero.

É verdade que Tião talvez não fosse o único a desenvolver novos ponteios de viola por volta dos anos 1950. Havia na época vários outros violeiros tentando saídas estilísticas. Mas foi Tião quem conseguiu criar uma escola de violeiros a partir das ritmadas técnicas de ponteio aliadas às novas condições de gravação da época, que melhoraram consideravelmente a ponto de captar detalhes timbrísticos antes imperceptíveis.

Assim ele se tornou um mito. Segundo José Roberto Zan, violeiro e professor do departamento de música da Unicamp, "a viola de Tião Carreiro equivale à guitarra do blues. Guardadas as proporções, a figura de Tião Carreiro se aproxima da figura mitológica de Robert Johnson", afirmou o pesquisador.

No meio caipira, seu modo de tocar influenciou um dos principais violeiros do país, Almir Sater, que no início da carreira teve a honra de conviver e aprender com o mestre. Outros caipiras, além de tocarem viola, foram influenciados pela forma de cantar de Tião, como a dupla Zé Mulato e Cassiano. Hoje em dia, nove entre dez iniciantes da viola caipira querem tocar os pagodes de Tião Carreiro.

Mas Tião não gravou apenas pagodes, mas também guarânias, rasqueados, lundus, balanços, modas de viola, cururus, cateretês, valseados, polcas paraguaias, querumanas e até sambas e tangos. Entre suas músicas mais conhecidas de seu repertório estão, além de "Pagode em Brasília", as belas "Amargurado", "Chora viola", "Rei do Gado", "Boi Soberano" e "Rio de Lágrimas", esta última considerada um hino não oficial da cidade de Piracicaba.

Tião não se contentou com as canções cantadas e flertou com a música instrumental. Entre as separações do parceiro Pardinho, gravou em 1976 o solo "É Isso que o Povo Quer" e, três anos mais tarde, o LP "Tião Carreiro em Solos de Viola Caipira", ícone da música instrumental para o instrumento.

Tião Carreiro foi um modernizador da forma de tocar caipira, apesar de hoje ser visto apenas como um dos pais da tradição folclórica. Aí reside um curioso paradoxo do violeiro.

Quando morreu, em 1993, de complicações de diabetes, vivia-se o boom da música sertaneja naquela década, que praticamente excluía a viola de seus arranjos. Tião ganhou poucos louros na sua morte, assim como outros ídolos caipiras falecidos naquela época, como Tonico, da dupla com Tinoco, morto em 1994, e João Pacífico, em 1998.

Mas diferentemente de outros caipiras, a influência de Tião permaneceu viva nas novas gerações. Em 1996 ele teve sua obra regravada pelos sertanejos modernos. A gravadora Continental homenageou-o com o disco-tributo "Saudades de Tião Carreiro", no qual suas músicas foram interpretadas por Sérgio Reis, João Paulo & Daniel, Chrystian & Ralf, Gian & Giovani, César & Paulinho, Rick & Renner, Bruno & Marrone, Zezé Di Camargo e Luciano, Chitãozinho & Xororó, entre outros.

Ao invés de desaparecer na tradição, o legado de Tião foi se expandindo. Diferentemente de artistas como Inezita Barroso ou Rolando Boldrin, cujo discurso caipira nunca foi assimilado pelos sertanejos, o toque e o canto de Tião mantiveram-se vivos entre os sertanejos do século 21.

Na geração do sertanejo universitário sua influência foi sentida não apenas no toque da viola, que retornou aos palcos com relativa força, mas sobretudo na forma de cantar. Os artistas mais influenciados por Tião são os jovens identificados como o subgênero "sertanejo bruto", como Jads & Jadson, Carreiro & Capataz, Bruna Viola, Loubet, Bruno & Barreto, Lucas Reis & Thacio, Mayck & Lyan e João Carreiro, este último talvez o mais virtuose de todos tanto na voz empostada quanto no bonito toque de viola.

Embora reverenciado por caipiras e sertanejos na cultura popular, Tião ainda não encontrou os louros da memória na cultura patrimonial. A cidade de Araçatuba tentou criar um museu em homenagem ao violeiro, mas o projeto não foi para frente. Que o Brasil não tenha um museu, filme ou biografia escrita sobre esse artista gigante demonstra o quanto estamos aquém dos nossos ídolos.

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