Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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'Casa-Grande e Senzala' e os mestiços da música sertaneja

Para a pauta identitária atual, a negritude tornou-se tema central, daí a justa busca por negros entre os sertanejos

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Em dezembro deste ano celebram-se 90 anos da publicação do clássico "Casa-Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, lançado em 1933. Trata-se de um livro interessantíssimo para se pensar a miscigenação nacional e a música sertaneja, tema desta coluna.

Em recente reportagem do jornal O Globo, vários especialistas acusaram a música sertaneja de ser racista pela baixa quantidade de artistas negros. Para a pauta identitária atual, a negritude tornou-se tema central, daí a justa busca por negros entre os sertanejos.

Retrato da dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó, que completa 50 anos de carreira - Folhapress

A reportagem de O Globo lembrou de alguns negros sertanejos e caipiras: João Paulo (da dupla com Daniel), Rick (da dupla com Renner), Kleo Dibah, Tião Carreiro, Cascantinha & Inhana, Pena Branca & Xavantinho, João Mulato, Irmãs Barbosa e Thácio —exímio violeiro da dupla com Lucas Reis. Faltou lembrar-se de Adauto Santos, outro ícone da música rural, hoje esquecido.

Será que Freyre concordaria com o veredito de que há poucos negros na música sertaneja? O pernambucano talvez preferisse buscar mestiços em vez de negros nesse gênero musical, pois quase todos os que atualmente são chamados de negros, na verdade, são mestiços.

Afinal, embora haja negros retintos e brancos azedos no espectro colorístico nacional, impera o hibridismo, especialmente nas camadas populares.

Em época de hegemonia de identitarismo birracial, o pensamento miscigenado de Freyre virou vilão. Quiçá nenhum outro livro serviu tanto de espantalho para a nossa época quanto o clássico do pernambucano. No entanto, uma releitura atenta e crítica de "Casa-Grande e Senzala" nunca se mostrou tão necessária.

Desde que foi publicado, a obra conquistou rapidamente o status de clássico. Ele vinha a contento dos interesses da sociedade brasileira em metamorfose. A tese do pernambucano nos mostrava como um povo único, incrivelmente plástico diante das estruturas, relativizador das duras relações coloniais.

Freyre buscava a especificidade nacional, nossa contribuição à civilização humana. Para isso nos mostrou um passado que, apesar de toda a crueldade do encontro de raças, também nos fez únicos. Por meio de "Casa-Grande e Senzala" pudemos nos enxergar como um povo híbrido, mestiço por excelência, algo cada vez mais dissonante aos ouvidos de hoje.

Há muitos exageros e imprecisões na escrita ensaística de Freyre que devem e precisam ser apontados. Desde os anos 1950 não faltaram críticos do livro a explorar suas limitações. Apesar disso, sua tese ainda permanece importante: devemos nos compreender como um país hegemonicamente mestiço, no qual a bipolaridade negro/branco só faz sentido se matizada em muitos aspectos, ponderada em várias gradações e tonalidades e, sobretudo, contextualizada.

A realidade brasileira é, aos olhos de Freyre, muito diferente do birracialismo americano, onde impera a dicotomia branco/negro. As atuais pautas identitárias vêm tentando encaixar o Brasil neste molde americano, mas nossa realidade escapole a todo instante.

Talvez por seguir a forma americanizada de enxergar nossas relações raciais, a reportagem de O Globo tenha se esquecido de alguns mestiços brasileiros —alguns até no nome, como João Lucas & Marcelo, Pardinho (da dupla com Tião Carreiro), Zé Mulato & Cassiano e Gabriel Vittor, da dupla Us Agroboys. Mais grave, o silêncio sobre três ícones mestiços da música sertaneja chama a atenção: Zezé Di Camargo e a dupla Chitãozinho & Xororó.

Temos dificuldade de enxergar a miscigenação nestas estrelas sertanejas, viciados que estamos na lógica birracial. Se há poucos "negros" na música sertaneja, também há outro fenômeno bastante notável em nosso olhar: o apagamento de sertanejos mestiços bem-sucedidos de nosso imaginário.

Em mais de 15 anos de pesquisa sobre a música sertaneja, nunca vi ninguém se perguntar se Zezé Di Camargo é mestiço. Não seria Zezé um mulato claro? A reportagem de O Globo sequer considerou a possibilidade. Por sua vez, o movimento negro parece pouco interessado em saber se Zezé é negro. Como hoje em dia a palavra mulato foi proscrita do vocabulário identitário, restaria ao sertanejo ao menos a negritude. Zezé é negro?

E o que dizer de Chitãozinho & Xororó? Os irmãos paranaenses têm clara ascendência indígena, mas dificilmente conseguimos enxergar essa origem na dupla. Ilustrativa dessa nossa miopia é o fato de que dificilmente Chitãozinho & Xororó entrariam por cota em qualquer universidade brasileira.

É comum as universidades cotistas pedirem àqueles que pleiteiam cotas indígenas, além da autodeclaração, uma carta de recomendação emitida por liderança local, normalmente uma personalidade ou um ancião reconhecido.

Também vale o Registro de Nascimento Indígena (Rani), documento emitido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Ou seja, tem que ser amigo do cacique, do pajé ou da burocracia estatal para ser considerado indígena em nossas universidades.

Por que é tão difícil vermos estes mestiços na música sertaneja? Em parte isso se deve ao fato de que as pautas raciais quase nunca foram importantes para os próprios artistas. Em parte se deve às cirurgias plásticas, às maquiagens e ao envelhecimento, que tendem a suavizar traços da mestiçagem, embranquecendo-os.

O enriquecimento também dificulta: estamos acostumados a ver a riqueza como sinônimo da branquitude. O fato de Chitãozinho e Zezé terem apoiado o fascista Bolsonaro tampouco coopera. Para movimentos identitários de esquerda é dificílimo reconhecer que negros e indígenas possam não ser "progressistas".

No fim das contas, a mestiçagem é apagada diante de nossos olhos. Hesitamos em aceitar o hibridismo nacional. A tese de Gilberto Freyre vive. Ainda temos dificuldade de nos ver no espelho.

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