Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso

O Talibã é aqui

Toda personalidade é cancelável. Basta procurar algum deslize em sua biografia

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Mês passado completaram-se dois anos e meio da volta do Talibã ao poder no Afeganistão, um dos mais tristes episódios da história mundial recente. Mais triste ainda é perceber que, para além de ter vencido militarmente, o Talibã venceu no campo das ideias culturais. Inclusive no Brasil. Não bastassem as aberrações de nossas direitas bolsonaristas, os ideais radicais culturais vigoram mesmo entre as esquerdas ditas "progressistas".

Em outras épocas as esquerdas se destacaram pela busca das liberdades. Hoje se comprazem em proibir, calar e censurar. Foi-se o tempo em que ser de esquerda era defender uma efetiva reforma agrária ou ter um posicionamento claro sobre a dívida externa ou o imperialismo americano. Enquanto todos almejam um iPhone, os porteiros progressistas atualizam o índex de proibições.

Do dia para a noite ficamos moralmente proibidos de ler, assistir ou ouvir qualquer artista que não seja um santo na Terra. Não há obra sem julgamento da biografia dos indivíduos, dizem os identitários de esquerda. Se a tal personalidade não tiver uma vida louvável, sua obra está condenada.

Para facilitar a vida de nossos "progressistas" da internet, segue a lista atualizada dos artistas e personalidades proibidas pelo Índex Talibã Tupiniquim. Assim fica mais fácil posar de lacrador sem ter lido ou estudado nada, bastando a cartada da biografia duvidosa de um artista.

Comecemos por nossos literatos. Para que ler, né? Que coisa inútil! Machado de Assis, um caso clássico de negro recalcado, merece ser ignorado. Não importa sua fina ironia, suas inovações estilísticas ou alto valor artístico.

Convém também esquecer os escritos de José de Alencar, um defensor da escravidão. Lima Barreto era contra o voto feminino e odiava o futebol como expressão popular. Euclides da Cunha? Racista e machista. Não tenhamos dúvida: seus textos não valem nada.

Oswald de Andrade tinha relações abusivas com Tarsila do Amaral e Pagu. Érico Veríssimo apoiou a ditadura do Estado Novo. Graciliano Ramos beirava o homofóbico paranoico na sua vida privada. Jorge Amado objetificava as mulheres em seus textos. Está cheio de racismo nos textos de Monteiro Lobato. Rachel de Queiroz não pode ser boa literata, já que apoiou o golpe e a ditadura militar. O mesmo vale para Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues, este último um depravado além de tudo. Glauber Rocha, por ter elogiado um militar como "gênio da raça", também pode ir pro paredão moral das artes nacionais.

E o que dizer da nata de nossa música? Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, Chico Buarque, Roberto e Erasmo Carlos: todos apoiaram a censura a biógrafos na década passada. Contrários à liberdade de expressão, merecem ser calados eles mesmos. Vinícius de Moraes, um tradicional homem brasileiro, era um abusador moral de suas amadas. Tom Zé foi um dos primeiros cancelados da MPB ao cantar uma música a favor da Copa das Confederações em 2013. Assim como o "dedo-duro" Wilson Simonal, todos merecem o paredão da memória.

Mano Brown? Sua mulher já disse que ele é machista. Marcelo Camelo? É casado com Mallu Magalhães desde quando ela era menor de idade, que absurdo! Mallu, por sua vez, foi chamada de racista em 2017 por causa de um clipe. Luiz Gonzaga apoiou a ditadura. Elba Ramalho é contra o aborto e carola na vida privada. Esqueça se cantam bem, têm boas composições ou mudaram nossa cultura. Nada disso importa!

Os sertanejos, apoiadores de Bolsonaro, podem ser cancelados da história musical do país também. A filha de Zezé, Wanessa Camargo, declarou que cometeu atos que podem ser enquadrados como "racismo estrutural" em sua participação no Big Brother deste ano. Ao assumir o crime, deveria ir para a cadeia.

No humor quase nada se salva. O jornal Pasquim e o pessoal do Casseta e Planeta eram machistas em tempo integral. Os Trapalhões eram racistas com Mussum. Chico Anysio e Jô Soares estereotipavam personagens gays. Esqueçamos!

Depois de darmos uma boa limpada na cultura brasileira, podemos transformar o mundo. Michael Jackson, pedófilo, pode ser esquecido. Nesta semana Madonna foi capacitista com um espectador em cadeira de rodas. Fora, Madonna! Os Beatles, por terem cantado "Run for Your Life", e os Guns´n´Roses, por "Used to Love Her", podem ser condenados por apologia à violência contra a mulher. Não importa se fizeram suas músicas há 50 ou 30 anos atrás. Não merecemos.

Picasso, esse abusador de mulheres, também pode ser limado da cultura ocidental. Kafka? Viciado em pornografia e bordéis. Nabokov? Pedófilo, claro, só assim para inventar sua Lolita. Diego Rivera era machista com Frida Kahlo. Achamos seus livros e quadros horrorosos por isso. Ezra Pound era fascista. Adeus, Pound.

Exposição com obras de Frida Kahlo em Berlim - John MacDougall/AFP

Tampouco sobra dignos na filosofia. Marx? Machista. Nietzsche? Racista e antissemita. Heidegger? Nazista. Foucault? Apoiador da revolução dos aiatolás do Irã e negacionista da Aids, doença da qual morreu. Na física podemos abandonar as ideias de Einstein, já que este foi machista com sua mulher.

Todo artista ou personalidade é cancelável. Basta procurar algum deslize em sua biografia. Sempre existe. Afinal, de perto ninguém é normal.

O Talibã é aqui. O Talibã não é aqui.

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