Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Dudu Purcena acusa jabá de matar o sertanejo, mas isso é a indústria pop

É claro que o mercado manipula sucessos, mas não terão também os gostos da sociedade mudado?

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Nesta semana uma discussão acalorada tomou as redes sociais sertanejas. O youtuber Dudu Purcena gravou um vídeo questionando os números inflados do gênero em plataformas de streaming, acusando o tradicional jabá de estar matando a música sertaneja.

Dudu Purcena é um dos mais importantes influenciadores digitais do gênero. Nascido em Quirinópolis, interior de Goiás, começou seu canal no YouTube em 2016 e hoje tem 415 mil inscritos.

Imagem do influenciador Dudu Purcena, que fala sobre música sertaneja em suas redes
Imagem do influenciador Dudu Purcena, que fala sobre música sertaneja em suas redes - @dudupurcena no Instagram

Numa época em que a crítica musical também se tornou digital, cada bolha estética ganhou seu próprio analista. Na música sertaneja não foi diferente e Dudu é um defensor do que concebe como "música sertaneja de qualidade". Quebra-se aí um outro mito sobre os fãs sertanejos, o de que os ouvintes deste gênero musical são todos passivos consumidores.

Em um story que causou polêmica no Instagram, depois estendido num vídeo do YouTube, Dudu acusou empresários de matar a música sertaneja.

Para ele, esses empresários são o "primeiro elo de coisas horrorosas que temos que aturar no mundo sertanejo, pois financiam pessoas que chegam ao sucesso apenas por causa do dinheiro, e não por que realmente merecem".

Segundo Dudu, hoje em dia basta você pagar para ter sucesso. "Pegue a pior música que você encontrar, a música mais chiclete, mais sem noção, com mais sentadas e quicadas, chame de sertanejo e o dinheiro faz a canção estourar".

Dudu reproduz uma crítica muito comum. A análise romântica de que a música do passado é melhor que a do presente é feita desde que houve a segunda gravação em disco.

Como muitos críticos da música, o que Dudu acusa é o velho jabaculê, ou simplesmente jabá, termo utilizado na indústria da música brasileira para descrever uma espécie de suborno em que gravadoras pagam a emissoras de rádio ou TV pela execução de determinada música de um artista.

Nem sempre o jabá era pago em dinheiro. O pagamento às vezes era realizado também em presentes, drogas e até mulheres, como já escreveu o jornalista André Barcinski em seu livro "Pavões Misteriosos", sobre a explosão da música pop no Brasil nos anos 1970 e 1980.

O jabá envolvia também um toma-lá-dá-cá curioso, no qual artistas pop se apresentavam gratuitamente em programas como os de Chacrinha, Bolinha e Gugu, e em caravanas promovidas por esses apresentadores nos subúrbios brasileiros em troca de divulgação. E há também os casos de se pagar jabá para que radialistas não divulgassem a música de um concorrente.

Hoje em dia o termo jabá ainda teria validade? Segundo Dudu, sim, pois o princípio é o mesmo, só que o poder de destruição da "verdadeira arte sertaneja" seria ainda maior. Para o youtuber, na época das gravadoras ainda havia alguma direção artística que impedia as maiores aberrações de serem lançadas. Hoje em dia vigoraria a pura mercantilização da arte.

Quem manda no mercado atual não são mais as gravadoras, cuja principal fonte de recursos era o disco. Desde a derrocada do CD no início dos anos 2000, os escritórios substituíram as gravadoras. Foi neste momento que surgiu o sertanejo universitário, cortando caminho através da pirataria e da internet e sobrepujando as gravadoras a partir de 2005 com artistas como Victor & Leo, Jorge & Mateus e César Menotti & Fabiano.

Com o tempo, os escritórios, que antes eram meras centrais de marketing do artista, se tornaram o elo central da cadeia produtiva sertaneja. E o dinheiro do jabá, que havia sido dirigido à pirataria no início do sertanejo universitário, passou a ser encaminhado aos serviços de streamings, a partir do fortalecimento dessas plataformas.

Através da compra de "plays" e de bots que demandam tocadas nos mais diversos streamings, empresários e escritórios inescrupulosos manipulam os algoritmos para conseguir emplacar artistas artificialmente.

O youtuber Dudu Purcena propôs o seguinte desafio. Se pegarmos os artistas sertanejos mais tocados no Spotify e compararmos com outras listas da internet relacionadas a música, veremos uma discrepância muito grande.

No Spotify vê-se artistas como Luan Pereira, Zé Felipe, Ana Castela, Zé Neto & Cristiano, DJ Chris no Beat, ocupando as primeiras posições. Já em sites onde se procura letras e cifras na internet, como o Letras.com, Vagalume.com, Cifras.com e o Cifraclub.com, não encontramos sertanejos entre os mais buscados.

Para o crítico, isso se deve ao fato de que o jabá hoje em dia tem como alvo apenas o streaming, e não outros sites de música, que não são vistos como indicadores de sucesso no mercado.

O youtuber não cita nomes, mas boa parte desses artistas elencados entre os mais tocados dos streamings são da Agroplay, escritório criado em 2021 por três empresários para empresariar a cantora Ana Castela. Em dois anos o escritório se tornou um mini-império no meio sertanejo com cerca de 250 funcionários e 450 milhões de views no Youtube.

A Agroplay investe em canções que misturam modão sertanejo com funk, rap e eletrônico. Exemplo desta estética é a canção "Pipoco", de Ana Castela, uma das músicas mais tocadas no Brasil em 2022. Ela começa com o som de um berrante, que logo se transforma num batidão que funde funk e música eletrônica.

Pode-se até questionar Dudu Purcena sobre a importância das letras e das cifras nas músicas sertanejas atuais, como fizeram muitos internautas. Mas outra questão é mais importante: será o jabá uma novidade na música sertaneja?

Mesmo aqueles artistas que Dudu mais gosta, os da música romântica sertaneja, para os quais "sentar" e "quicar" não são os verbos mais conjugados, também eles foram acusados no seu tempo de serem frutos da manipulação das mídias.

O jabá é um fato da indústria da música pop. Nos Estados Unidos também existe um termo para essa prática, payola. É claro que a indústria da música manipula sucessos. Mas não terá também os gostos da sociedade, especialmente da juventude, mudado de uns tempos para cá?

Meus alunos universitários, que não gostam nadinha de sertanejo, também parecem ter pouco afeto para com "guitar heroes" e violeiros. Chico Buarque, Zeca Baleiro ou Marisa Monte dizem-lhes muito pouco.

Interessa-lhes mais a música eletrônica de Pabllo Vittar, Gloria Groove ou Luísa Sonsa do que um músico "antigo". O que parece que estamos vivendo é a transformação da música em eletrônica definitivamente. Mesmo entre sertanejos.

No último Rock in Rio, de 2022, os shows de artistas que ou são DJs, ou cantam em cima de bases gravadas, como Post Malone, Racionais MC's, Alok e DJ Marshmello mobilizaram multidões. Antigamente tal prática seria denunciada como playback. Hoje, num mundo em que a performance conta mais do que uma gravação interessante, o status da música mudou.

Dudu começou a carreira nas rebarbas do que se convencionou chamar de sertanejo universitário, agora superado por artistas de pegada eletrônica, como Ana Castela, de meros 20 anos. De tempos em tempos a música sertaneja nos transforma em velhos da noite para o dia, superados por gerações mais novas.

Dudu, com pouco mais de 30 anos, está se tornando um velho. Bem-vindo ao clube, Dudu!

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