Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​
Descrição de chapéu Cinema

'Mães Paralelas' traz ao cinema de Almodóvar uma misoginia inédita

Do que mais chamar um diretor que usa dilemas de suas figuras femininas como pretexto para um filme de justiça social?

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A matemática define linhas paralelas como traços que se prolongam lado a lado sem nunca se encontrar. Não é o caso das mães de "Mães Paralelas", último longa de Pedro Almodóvar, que não só cruzam mais de uma vez, como chegam a coincidir numa mesma linha quando formam o núcleo familiar homoafetivo de duas mulheres que criam uma criança.

Talvez a falta de precisão do título explique parte da minha antipatia ao filme de Almodóvar, mas há muito mais por trás do desalento que senti ao ver o 23º longa-metragem do autor de clássicos como "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", de 1988, "Carne Trêmula", de 1997, e "Fale com Ela", de 2002, para citar alguns.

O cineasta espanhol construiu sua filmografia com um estilo inconfundível que vai muito além da direção de arte e de seu vermelho característico. Almodóvar se consagrou como o mestre do melodrama com alta voltagem sexual e nós, espectadores, nos habituamos a apreciar suas personagens neuróticas envoltas em novelos de reviravoltas, revelações e coincidências, desvendadas com agilidade narrativa e humor.

"Mães Paralelas" tem alguns desses elementos: nos primeiros oito minutos de filme, a trama já avançou meses, duas mulheres já tiveram suas vidas viradas de ponta-cabeça e outras duas estão para nascer (tomo a formulação emprestada de Anthony Lane em sua crítica para a New Yorker).

Com sua usual habilidade, o diretor constrói rapidamente um terreno de personagens femininas que renderia um filme ótimo de Almodóvar: Janis (Penélope Cruz), a mulher independente menos bem resolvida do que imagina; Ana (Milena Smit), a jovem abusada que confia em quem não deveria; sua mãe Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), a personagem clássica da atriz narcisista; a amiga estranha e segura (pela inconfundível Rossy de Palma); o marido ausente.

Mas é justamente ao descartar tudo isso que "Mães Paralelas" deixa a desejar. A facilidade com que Almodóvar se desfaz dos dramas dessas personagens para engatar num desfecho político de denúncia sobre a guerra civil parece, no mínimo, oportunista.

Atenção para o spoiler. O romance de Janis e Ana é resolvido num telefonema, o luto de Janis (que na mesma tacada perde a parceira e a filha de criação) é soterrado com a pá de cal de uma gravidez oportuna —isso sem falar no luto de Janis pela filha biológica morta, solenemente ignorado pela trama, e no estupro coletivo de Ana, pincelado como um mero detalhe de sua biografia.

Almodóvar parece agir como o pai de Ana, que se calou diante da tragédia da filha ("para evitar escândalo"), e com muita facilidade evitou ou descartou os dramas femininos que não lhe interessavam. Vi em "Mães Paralelas" —e digo isso com pesar— uma misoginia até então inédita para mim no cinema de Almodóvar.

Do que mais podemos chamar um cineasta que usa os dilemas de suas personagens femininas como pretexto para fazer um filme de justiça social? Um filme que tem mães no título carrega em si uma questão política inevitável, especialmente ao passear por temáticas poderosas como a maternidade biológica, a de criação, aquela que é escolhida e a outra imposta por estupro. Fazer desse filme veículo para uma questão política de memória me parece leviano.

Chama a atenção que esta insensibilidade a questões violentíssimas como estupro, maternidade e o luto feminino (amplamente disseminada em obras assinadas por homens) não seja sequer mencionada na massa de críticas louvatórias feitas nos principais veículos midiáticos na língua inglesa —New Times Times, LA Times, Guardian, New Yorker, Time Out, Variety, Hollywood Reporter, Indie Wire, Screen Daily— todas assinadas por homens. Todos satisfeitos com a lição histórica de Almodóvar.

Nesse sentido, acho revelador o tom condescendente de Janis ao tomar sua consciência histórica como virtude e disparar para a jovem Ana: "É hora de você conhecer o país onde vive". Janis, como veículo da visão do diretor, se limita a olhar para trás e não se pergunta sobre o país que Ana poderia lhe apresentar.

Falta em "Mães Paralelas" a curiosidade, o senso de humor e de perigo que sempre marcaram o cinema de Almodóvar. Aqui, ele soa como um velho careta fascinado pela sua própria consciência histórica, mais preocupado com seu discurso do que com a matéria bruta humana que tinha em mãos.

Talvez ele próprio tenha desvendado o segredo ao falar de Penélope Cruz para o New York Times: "Penélope tem uma fé cega em mim. Ela está convencida de que eu sou um diretor e um escritor melhor do que realmente sou."

Na próxima coluna, falarei de outro filme recente sobre maternidade que vai em sentido oposto e poderia inclusive emprestar seu título ao longa de Almodóvar: "A Filha Perdida", de Maggie Gyllenhall.

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