Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Descrição de chapéu Cinema

'Zola' retrata strippers e venda de sexo em ótima narrativa sem moralismos

Filme de Janicza Bravo apresenta história autêntica evitando ser apenas uma plataforma para discursos políticos

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"Você quer ouvir a história de como eu e essa garota nos desentendemos? É um pouco longa, mas é cheia de suspense" –assim começava a série de 148 tuítes que A’Ziah "Zola" King publicou em 27 de outubro de 2015. É também o início de "Zola", filme de Janicza Bravo que se baseia na história e que está disponível no Brasil no serviço de aluguel do YouTube.

A narrativa de Zola (que pode ser lida em inglês aqui) foi escrita depois de uma viagem à Flórida com uma dançarina que havia conhecido dias antes. A jornada para conseguir um dinheiro extra se transforma numa romaria maluca no estilo "Alice no Buraco do Coelho Branco", de Lewis Carroll. A história viralizou e chegou a render à jovem de Detroit um perfil na revista Rolling Stone.

Diretora Janicza Bravo em exibição especial de seu filme 'Zola', em Los Angeles - Frazer Harrison - 29.jun.21/AFP

Zola não foi a primeira a criar uma narrativa em 140 caracteres: a onda das micronarrativas é mais antiga do que se imagina, como escrevi a respeito nesta Folha anos atrás. O segredo de seu sucesso está na voz da autora, cuja autenticidade transborda de seus tuítes espirituosos e originais. Como escreveu Ava DuVernay, primeira diretora negra indicada ao Oscar de melhor filme, com "Selma": "Drama, humor, ação, suspense, desenvolvimento de personagens. Ela [Zola] sabe escrever!"

O segredo de "Zola", o filme, é o equivalente cinematográfico da tuiteira: Bravo sabe fazer cinema e a autenticidade de sua voz pulsa a cada frame ou batida da banda de som. A nova-iorquina de 40 anos, que assina o roteiro ao lado de Jeremy O. Harris, já havia causado barulho no Festival Sundance em 2017 com seu primeiro longa "Lemon" e não escolheu uma empreitada fácil para o seu segundo filme.

A história de Zola é boa, mas retratar o universo das strippers e do comércio de sexo traz consigo um risco iminente: enveredar para certo moralismo e um discurso julgador que coloca tudo em preto e branco.

É inevitável não pensar na viagem à Flórida das garotas de "Spring Breakers - Garotas Perigosas", de Harmone Korine lançado em 2013, e na personagem que talvez melhor representa esse maniqueísmo: Faith, interpretada por Selena Gomez, que tenta convencer as amigas a interromper aquela viagem de descida ao inferno. O filme de Korine causou controvérsia na época do seu lançamento: de um lado, criticado pela objetificação das mulheres, de outro considerado feminista por retratar o empoderamento feminino.

A mesma dualidade crítica foi enfrentada mais recentemente por "Pleasure", de Ninja Thyberg, ainda não disponível no Brasil, que se propõe a problematizar a indústria pornográfica de Los Angeles e acaba transpirando pretensão em cenas excessivamente carregadas de significado que resvalam num discurso maniqueísta.

"Zola" não se propõe a nada disso: o filme não é uma plataforma para discursos políticos ou moralistas sobre o tema. O que não significa que Bravo seja apolítica ou ignore o contexto histórico em que sua obra está inserida. Pinceladas de realidade entram pela janela do carro em que os personagens viajam: a bandeira dos confederados a meio mastro, uma abordagem policial abusiva contra um negro. Mas são recados dados com agilidade, sem pausa na narrativa.

O longa é, acima de tudo, uma aventura cinematográfica: ritmo guiado pela trilha e pela edição precisa de Joi McMillon, indicada ao Oscar de melhor montagem em 2017 por "Moonlight"), um desenho sonoro que reforça a presença das mídias sociais na vida das personagens e uma atmosfera magistralmente conduzida pelos sotaques marcados e ritmados de Zola e Stefani.

Esta última fica a cargo da atriz Riley Keough, que constrói uma Stefani absolutamente magnética e que carrega o filme com louvor ao lado da protagonista, Zola. Completam o elenco Colman Domingo, como o cafetão X, e no papel do namorado, Derek, temos Nicholas Braun, que interpreta o parasita Greg da badalada e genial "Succession", disponível na HBO. Mas o show é de Taylour Paige no papel de Zola.

Há algo de especialmente libertador no olhar ambivalente desta personagem e nada melhor do que os olhos altamente expressivos de Paige para concretizar isso em cena. A atriz, que muitos reconhecerão como a companheira da protagonista de "A Voz Suprema dos Blues", dirigido por George C. Wolfe e disponível na Netflix, é uma força da natureza, com seu corpo e rosto que atraem a câmera de forma magnética.

"Zola" é uma comédia de erros narrada com humor, perspicácia e despojamento. E é justamente nesse olhar que reside a maior força do filme. Isso fica evidente quando vemos na tela a versão da história contada por Stefani: seu relato maniqueísta, a cena hilária de Zola vestida de sacos de lixo, tudo contribui para uma visão pueril do mundo. É a hora em que, como espectadores, vibramos pela sorte de ter passado um filme inteiro nos olhos de Zola.

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