A pedidos, comento o caso dos dois garotos que tiveram suas matrículas na USP barradas por não terem sido considerados pardos o bastante. O problema é insolúvel. A cor da pele se transmite por um complexo modelo de herança poligênica. Isso significa que um casal inter-racial pode gerar filhos com as mais variadas tonalidades de pele, do quase branco ao bem escuro. Outras características fenotípicas que costumamos associar a pretos, como tipo de cabelo e formato do nariz, seguem modelos igualmente complexos.
Nada disso é muito novo. Desde a Antiguidade temos uma literatura em torno dos paradoxos da indeterminação: quantos fios de cabelo um indivíduo precisa perder para ser considerado careca? Tentar procustianamente forçar um amplo leque de possibilidades fenotípicas num juízo binário do tipo "pardo" ou "não pardo" é receita segura para produzir injustiças.
A primeira instituição republicana a ter de lidar com essa questão, o IBGE, contornou a aporia recorrendo à autodeclaração: cada um escolhe o grupo ao qual quer pertencer. Funcionou bem até virem as cotas raciais. Como elas oferecem uma palpável vantagem a membros de certas minorias, surgiu a possibilidade de pessoas abusarem do sistema. Como resolver isso?
Não sei, mas a resposta do STF, que foi autorizar os comitês de heteroidentificação, é, como vimos, ruim. Ela coloca a autodeclaração, que pode ser genuína mesmo para alguém de tez clara, contra a decisão da banca. Pior, ela lança automaticamente sobre os reprovados pela comissão a suspeita de fraudadores.
Mas o juízo do comitê é essencialmente um juízo estético —e, se o seu filme favorito perde o Oscar, não parece muito apropriado acusar a Academia de fraude.
O irônico aqui é que, para justificar a heteroidentificação, é preciso rejeitar teses caras ao movimento woke, como o direito de escolher a própria identidade (transexuais) e a recusa a classificações binárias.
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