Ian Bremmer

Fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria de risco político dos EUA, e colunista da revista Time.

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Para modernizar o contrato social, Índia aposta em sistema biométrico

Mundo vive uma onda de desconfiança da democracia e de líderes políticos

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Se há uma coisa que une as pessoas do mundo hoje é a indignação com os políticos do establishment. Nos últimos dez anos essa indignação mudou fundamentalmente a cara da política global, nacional e internacionalmente.

O ressentimento nos EUA levou à eleição de Donald Trump; a ira na Ucrânia levou à eleição de um humorista profissional e astro de uma sitcom. Na Argélia e no Sudão, a ira derrubou ditadores que estavam no poder havia anos.

No México, a indignação pública levou à eleição do esquerdista Andrés Manuel Lopez Obrador; no Brasil, o sentimento de revolta pública levou o direitista Jair Bolsonaro a ser eleito. A ira não é um fenômeno de direita ou de esquerda –é um fenômeno, simplesmente.

Indiano usa impressão digital no programa Aadhaar para retirar dinheiro de sua conta
Indiano usa impressão digital no programa Aadhaar para retirar dinheiro de sua conta - Noah Seelam - 18.jan.17/AFP

No coração dessa ira está a impressão generalizada de que os líderes governamentais e as instituições democráticas que os conduziram ao poder traíram a confiança da população; que os contratos sociais firmados no passado deixaram de cumprir sua função.

Para modernizar o contrato social, adequando-o ao século 21, governos de países ricos e pobres estão recorrendo a tecnologias novas e poderosas. E nenhum sistema representa tão bem quanto o programa Aadhaar, na Índia, tanto o potencial extraordinário dessas novas ferramentas quanto o risco considerável que elas encerram para a liberdade política.

Em 2010 o governo indiano lançou o Aadhaar, ambicioso sistema de identificação biométrica, para ajudar a rastrear os serviços sociais oferecidos ao 1,34 bilhão de cidadãos do país. Depois de fazer exames de íris e deixar suas impressões digitais, cada cidadão indiano cadastrado no sistema recebeu um número de identidade singular composto de 12 caracteres.

Com esse número os cidadãos puderam ter acesso mais rápido e seguro a seus benefícios pagos pelo governo. Para o governo, a vantagem foi a eficiência maior na arrecadação de impostos e repressão às fraudes de subsídios.

Vinculando o Aadhaar ao esquema governamental de inclusão financeira, chamado Pradhan Mantri Jhan Dhan Yojana, o governo começou a transferir dinheiro diretamente para as contas bancárias de pessoas sem condições de arcar com as taxas cobradas pelos bancos ou manter os saldos mínimos necessários para conservar suas contas em funcionamento.

Futuramente, porém, o governo vai transferir diretamente aos cidadãos suas restituições de impostos, serviços de saúde e virtualmente todos os benefícios sociais, passando ao lado da complicada burocracia pública e da corrupção que frequentemente a acompanha.

Quando o programa foi lançado, o governo indiano –então sob o controle do partido político Congresso Nacional Indiano— prometeu que a adesão ao sistema seria voluntária. Mas sob o primeiro-ministro atual, Narendra Modi, e seu Partido Bhararitya Janata (BJP), o programa virou cada vez mais obrigatório como parte de sua campanha de “boa governança”, não obstante a resistência inicial do BJP ao Aadhaar.

Para Modi, o Aadhaar é o sistema que garante que todas as crianças matriculadas em escolas recebam almoço gratuito, que todas as pessoas compareçam ao trabalho e paguem seus impostos e que todos os idosos com direito à aposentadoria a recebam regularmente e de modo pontual.

Mas, apesar de todo o potencial positivo do Aadhaar, o sistema encerra muitos perigos. Para começar com a logística: o funcionamento correto do sistema requer acesso estável e constante à eletricidade e internet, algo ainda fora do alcance de milhões de indianos.

Há também justificadas preocupações com a privacidade. Em setembro de 2018, apesar de concluir que o Aadhaar não violava o direito dos cidadãos à privacidade, a Suprema Corte indiana decidiu que o programa não deveria ser vinculado obrigatoriamente a serviços básicos, como a abertura de contas bancárias, compra de passagens aéreas ou obtenção de serviços de telefonia celular.

O mais preocupante de tudo talvez seja que, graças ao Aadhaar, hoje existe um banco de dados centralizado que contém os dados biométricos detalhados de mais de 1 bilhão de pessoas do mundo e que tem acesso direto às contas bancárias delas.

Além do receio quanto à possibilidade de futuro uso indevido dessas informações pelo governo, o sistema cria um alvo atraente para hackers tanto ligados ao Estado quanto independentes, alguns dos quais já tentaram invadir o sistema, alguns com êxito limitado.

Todos esses são riscos que o governo indiano atual está disposto a encarar em troca dos benefícios proporcionados pelo sistema. Mas os riscos indicam claramente que, num esforço para buscar soluções às reivindicações legítimas dos cidadãos, líderes políticos pelo mundo afora estão promovendo sistemas que não compreendem plenamente.

O Aadhaar e sistemas semelhantes serão uma das questões políticas globalmente mais importantes para a próxima geração. Fiquem de olho.
 

​Tradução de Clara Allain

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