Uma amiga foi expulsa da Tsinghua, a principal universidade chinesa, após colocar bandeiras de arco-íris pelo campus em 2021. Outro amigo perdeu a promoção para a qual se preparou por dois anos em um banco estatal chinês depois de a chefia descobrir que ele mantinha uma união estável com outro homem.
Uma jornalista chinesa com quem convivi foi assediada por um vizinho que, ao saber do relacionamento dela com a namorada, insistia em lhe oferecer sexo dizendo ser a cura para aquela "doença". Ao denunciar à polícia, ela foi ameaçada e forçada a apagar posts nas redes sociais sobre o caso.
Essas não são histórias que ouvi de alguém. As pessoas que menciono têm nome, sobrenome, empregos, aspirações. Conforme o mês do orgulho LGBTQIA+ do outro lado do globo vai chegando ao fim, julguei necessário ilustrar as violências a que pessoas LGBT+ estão sujeitas diariamente na China, em especial nos últimos anos, com políticas de vigilância cada vez mais ostensivas, nacionalismo e muito sexismo.
A China deixou de considerar a homossexualidade uma doença em 2001, mais de uma década após a OMS retirar o termo da Classificação Internacional de Doenças. Quando o fez, dividiu pessoas LGBT entre "gays de verdade" e os "levados a se entenderem como gays", abrindo uma fresta perigosa para terapias de conversão que se espalharam pelo país até serem eliminadas pela lei de saúde mental, em 2013.
A vida de minorias sexuais por lá não se tornou um paraíso após a decisão, mas o reconhecimento de que elas existiam foi o primeiro passo para uma vida fora das sombras. Ainda que uma preocupação crônica das famílias quanto à capacidade de pessoas LGBT+ gerarem herdeiros permanecesse, cada vez mais chineses se sentiam confortáveis para viver uma vida fora da heteronormatividade. Alguns levaram casos de discriminação à Justiça e, se não ganhavam, ao menos forçavam uma discussão pública sobre o tema.
Essa é uma tendência largamente revertida na China de 2023. Em maio, o Centro LGBT de Pequim, que organizava eventos e oferecia acolhimento emocional, educação sexual e qualificação profissional a pessoas queer, fechou as portas. Ativistas contam que o trabalho ficou praticamente inviabilizado com a proibição do governo de receber doações do exterior, além da censura de campanhas nas redes sociais e do assédio oficial a advogados e médicos que se voluntariavam para atender quem por lá passava.
O caso se soma à cassação de licenças para que bares e clubes LGBT+ funcionem no país, a extinção da parada do orgulho em Xangai, o encarceramento de mulheres lésbicas feministas em 2015 (o crime: distribuir panfletos no metrô contra o assédio sexual nos vagões), o banimento de atores "afeminados" nos programas de TV e a constante propaganda estatal contra mulheres que, por qualquer razão, recusam-se a ter filhos e a contribuir para mudar o cenário de uma população que envelhece e encolhe.
A mídia estatal, até pouquíssimo tempo autorizada a discutir e a reportar livremente sobre o tema, agora trata as questões LGBT+ como um conceito neoliberal do Ocidente. Quase nos transporta a meados dos anos 1990, quando oficiais do Partido Comunista insistiam que não havia gays na China.
Esta coluna não é uma resposta a posts que vi nas redes sociais no Brasil e que reproduzem o discurso perverso chinês de negação da existência de pessoas LGBT+. É um gesto pequeno de reconhecimento em nome dos amigos com quem convivi e de cujo sofrimento partilhei e também daqueles que, pela realidade a que são submetidos, nunca tiveram coragem de mostrar suas cores. Eu os vejo. Vocês importam.
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